As Crônicas de Arian 2 – Capítulo 3 – Amit

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Capítulo 3 – Amit

Jon acordou ofegante com um barulho de algo batendo no chão do seu quarto. A madeira estalou levemente. O quarto estava escuro, e a luz que vinha pela janela só revelava a silhueta de um homem dormindo em uma cama próxima a dele, encostada na parede contrária do quarto. Arian olhou na direção do barulho por algum tempo e depois voltou a fechar os olhos. Ainda chovia, e as nuvens da tempestade bloqueavam a lua, mas a cada trovão dava para ver todo o quarto do hotel com facilidade. Ele era bem comum, com apenas um armário, banheiro e duas camas, uma de cada lado.

Não havia o que reclamar disso, o problema real era o clima tenebroso do lugar. Não bastasse a cidade ter ruas estreitas, construções bastante envelhecidas e com pintura escura, ela ainda parecia mais fria do que deveria para aquela região.

De novo os barulhos de passos do lado de fora…

— Arian, está escutando? — perguntou Jon, com a voz bem baixa.

— Aham… — Arian nem abriu os olhos para responder, parecia bem calmo para alguém que queria sair da cidade faz pouco tempo.

— Sabe o que é isso?

— Se te disser não vai conseguir mais dormir… 

— Você falar isso já me deixa nervoso o bastante…

— Certo, esqueça o que eu disse então. 

De novo, um estrondo, e a madeira escura no chão trincou, agora perto do armário. Arian abriu os olhos calmamente e disse:

— Vai ser uma longa noite, ainda bem que não tenho que dormir tanto quanto você.

— Saber mais ou menos o tempo não te dá dicas de qual sua raça? — Jon nem tinha tanto interesse nisso, mas queria alguma coisa para pensar fora aqueles barulhos.

— Não muito, tem várias raças que dormem menos que humanos, e algumas nem dormir precisam… Tenho inveja dessas… Você não faz nada enquanto dorme, é uma perda de tempo…

— Ao menos em uma coisa concordamos… — disse o garoto.

Arian fechou os olhos e voltou a tentar dormir. Jon, no entanto, não conseguiu fazer o mesmo, e sua mente acabou automaticamente pensando nos pontos mais estranhos daquele dia, desde que chegaram na cidade.

Primeiro, Arian afirmou estar cheio de fantasmas no local. Segundo ele, eram geralmente inofensivos, mas a maioria deles estar focados na Zek não era bom sinal. Levando em conta que ele era o mais cético do grupo até aquele momento, seu comentário foi levado bastante a sério pela líder. Ver fantasmas não era um dom comum, mas também não chegava ser raro o bastante para surpreender ninguém do grupo.

Arian logo sugeriu que era melhor sair da cidade, mas aí foi lembrado dos teleportadores que ainda estavam perto da entrada. No momento, o grupo estava temporariamente preso, e não havia opção se não passar pelo menos a noite em Amit.

Mas naquele momento Jon não estava preocupado com isso, e sim fascinado com o assunto dos fantasmas. Os livros sobre exorcismo só eram permitidos aos alunos de nível avançado, então ele nunca pode ler muito a respeito de espíritos na cidade da luz.

Eles deixaram os cavalos e a carruagem em um pequeno estábulo, ao lado do hotel.  A hospedaria tinha três andares, feita em sua maioria por uma madeira bem escura. Assim que entraram no local, Joanne mandou o grupo esperar e foi pegar quartos para todos. Nesse momento Jon começou a bombardear Arian de perguntas.

— Arian, o que fantasmas podem fazer, afinal? Digo, eles são perigosos?

— Depende, têm vários tipos, alguns conseguem interferir um pouco com o plano material, empurrar pessoas, ou derrubar coisas, mas são raros. O problema aqui é o fato de que quase todos os fantasmas nesse local são mulheres de cabelo curto, e estão olhando para Zek com pena.

O guardião estava incomodado, olhando de um lado para o outro sem parar, e realizando algumas ações que o faziam parecer um louco, como levantar as mãos e agarrar o ar, como se estivesse segurando algo, enquanto fazia perguntas aleatórias. 

— Não consegue falar com elas? 

— Elas me escutam, mas não falam nada.

— Como elas são? O rosto está despedaçado ou algo assim? — Jon estava forçando a visão, na esperança de ver algo, mas não obteve resultado, fora fazer Dorian e Marko começarem a rir dele.

— Eles permanecem no estado em que morreram. A maioria pode ser confundida com pessoas normais. Mas tem alguns… — Arian não completou a frase, só fez uma cara de nojo, dando a entender que haviam alguns em mau estado.

— Como podem ser confundidas com pessoas normais se são meio transparentes?

— De onde tirou isso? Eles são idênticos a pessoas normais, por que acha que tive que perguntar à Kadia para comparar o que ela estava vendo? Se não tomar cuidado acabo falando com eles achando que estão vivos. 

Jon ficou meio pasmo com a resposta, não era nada parecido com o que escutou nos mitos do seu mundo.

— Espera… Eles não atravessam coisas também? Seria uma forma de diferenciar.

— Não é bem assim. Alguns conseguem, mas a maioria está sujeita as mesmas limitações físicas que uma pessoa comum, com a diferença que não conseguem mover nada de lugar.

— Nem pessoas?

— Seus corpos não são nada mais que o resto de suas almas quando vivos, e quando encostam no nosso corpo, batem na nossa alma e são repelidas, como uma pessoa normal.

Cada vez mais interessado, ele questionou:

— Espera, eu não deveria sentir quando isso ocorre?

— Se tiver uma forte ligação com o plano espiritual, talvez… Não sei bem como essa parte funciona, mas deve ter algum livro que explica em detalhes…

— Fascinante… Vou tentar achar algo a respeito na biblioteca da cidade, amanhã.

Joanne voltou da recepção do hotel e entregou as chaves de seus respectivos quartos a todos ali. Ficaram todos um do lado do outro, no terceiro andar.

— Pelo que a recepcionista falou não podemos sair daqui por pelo menos 2 dias, que é o tempo padrão para os teleportadores morrerem. Vou ficar colada na Zek o tempo inteiro que estivermos aqui, e ela é bem capaz de se defender, então devemos ficar bem. Vocês são livres para andar por aí, até porque não obedeceriam mesmo que eu pedisse o contrário, mas se mantenham em grupos, por favor.

— Tem algo errado com as pessoas desse lugar…

Kadia estava encostada em uma parece, com um olhar extremamente tenso para a recepcionista, que evitava olhar para a demônio.

— Você também pode ver fantasmas? — Questionou Jon.

— Não, estava falando da mente dessa gente… 

— Kadia, por precaução, você vai ficar no nosso quarto.

— Como assim? Eu já tinha combinado de ficar com o Arian — disse ela, colocando a mão ao redor do ombro do guardião, enquanto olhava nos olhos de Lara e fazia um sorriso sádico. Arian fez uma cara de desagrado, provavelmente por saber a intenção de Kadia com aquilo. 

Lara, por sua vez, se agarrou no braço livre dele. Desde que saíram de Amira, ela e Kadia pareciam mais interessadas em provocar uma a outra do que tentar algum avanço sério. 

— Vou dormir com ele também então.

— Agora sim consigo fazer a fama de pedófilo dele ir para frente — comemorou Marko, tentando conter os risos.

— Não importa minha aparência, eu tenho 20 anos! — reclamou Lara.

— Mas parece ter 10, é muito bizarro isso… — Dorian pareceu estar falando sério pela primeira vez naquele dia. 

— Na verdade, lembro de uma raça no continente central que para de envelhecer mais ou menos nessa idade, e chegam a mais de 500 anos de vida. É sempre estranho ver eles flertando com outras raças… Na verdade, eu quase dormi com um quando fiquei bêbada uns anos atrás… 300 anos e parecia ter 9, devia ter metade da minha altura ou menos… — falou Kadia.

Dorian, Marko e Joanne ficaram olhando incrédulos para Kadia por alguns instantes depois dessa revelação. Já o guia não pareceu achar nada demais.

— E eu que pensei que dormir com meio animais já era estranho o bastante… — disse Marko, abismado.

Arian começou a soltar gemidos de dor, como se alguém o estivesse machucando. Ele rapidamente se desvencilhou dos braços de Kadia e Lara, e resmungou algo baixinho.

— Chega vocês duas! Kadia vai ficar no nosso quarto, os poderes dela podem ser úteis. Arian, vou deixar Jon dormindo com você, tudo bem? — perguntou Joanne.

— Claro.  

— Queria ficar com o Marko. — disse Jon.

— Vou deixar ele com o Dorian e o nosso guia.

— Eu não vou dormir do lado dela — reclamou Lara, apontando para Kadia.

— Se continuar reclamando, coloco vocês duas na mesma cama.

A cena era engraçada para Jon, pois parecia uma mãe brigando com as filhas.

Logo depois, viria a segunda parte estranha daquele dia, quando Jon encontrou Lara e o guia deles conversando escondidos. Jon foi pegar algo para comer no bar do lado do hotel, e quando voltou, encontrou os dois em um corredor vazio. Estavam falando tão baixo que não dava para escutar direito. O homem estava com uma cara séria, e Lara parecendo muito brava. De repente, ela falou tão alto que deu para escutar:

— Não ouse fazer isso!

Foi quando a madeira em baixo dos pés de Jon rangeu, e os dois olharam na direção dele. Ele foi rápido o bastante para saltar para trás e se esconder atrás de uma parede antes que o vissem, mas estava suando frio. Esperou um tempo, e olhou de novo. Não havia mais ninguém lá. Os dois devem ter pensado que eram clientes se aproximando e saíram dali. “Mas por que Lara estava nervosa com o guia?”, Jon se perguntou. Foi quando virou de costas para caminhar em direção a seu quarto e levou um susto. Lara estava parada na sua frente, e apesar da aparência infantil, seu olhar era de um assassino furioso.

— Não sei o que ouviu Jon, mas se falar algo vai acabar morto. 

Ela então se virou e foi para o seu quarto. Jon estava tremendo. Não era uma ameaça qualquer, era como se ela tivesse certeza do que iria ocorrer. Lara adorava provocá-lo na academia, mas isso não parecia uma brincadeira de mau gosto…

Jon decidiu deixar isso para lá, por enquanto, e foi para o quarto de Arian dormir. O guardião estava comendo ração militar quando entrou no quarto, com Kadia sentada a seu lado, falando sobre alguma coisa bem baixinho. Seja o que for, não queria que Jon escutasse. Arian não falava quase nada, só escutava. Eles então se despediram e Arian foi dormir.

— Boa noite, Jon. <E>, me avise se ver algo suspeito… E Jon, não estranhe se eu me mover de forma estranha, provavelmente é ela mudando de posição.

O som de um trovão trouxe Jon de volta ao presente, onde ele não conseguia dormir por causa da terceira coisa estranha daquele dia: os barulhos. Conseguia escutar rangidos constantes na madeira, como se tivesse gente andando pelo quarto. E quando finalmente se acostumou a isso, ou foi vencido pelo cansaço, vieram os barulhos de algo se chocando com força no chão e paredes, a ponto de trincar pedaços da madeira. Tentou pensar racionalmente naquilo. Devia envolver fantasmas, mas se Arian não estava preocupado, não devia haver perigo. Se bem que ele só se preocupava com elfas… E outro trovão soou lá fora, ao mesmo tempo que a porta do quarto abriu com um estrondo, e o som da respiração forte do ser parado na porta chegava a seus ouvidos.

Jon levou um susto, até notar que era Marko.

— Ainda acordado? — perguntou Marko, encarando Jon.

— Essa cidade me dá arrepios, e tem esses barulhos estranhos… Não consigo dormir direito, e o Arian não ajudou nem um pouco tentando nos convencer a ir embora daqui na entrada do hotel.

— Certo… Então, que tal se eu te fizer companhia?

Marko nem esperou a resposta. Foi até o armário, pegou alguns lençóis e forrou no chão, ao lado da cama de Jon. Quando ele se aproximou conseguiu notar que apesar da voz parecer normal, Marko estava suando frio, e respirando de forma ofegante. Sua cara era puro pavor.

— Marko, você tá legal?

— Ah… Eu… Não gosto desse lugar… Arian tem uma fantasma de guarda, é mais seguro ficar perto dele nessas horas… — Enquanto falava, Marko olhou para Arian e levou um susto — Caramba, que coisa bizarra!

O guardião não tinha mentido sobre as posições estranhas enquanto ele dormia. No presente momento, seus braços estavam parados no ar, como se estivesse abraçando um travesseiro invisível. Meio óbvio que era a tal fantasma que estava ali, mas isso não tornava a visão menos estranha.

O chão voltou a ranger perto deles.

— Droga, não vou conseguir dormir assim. Jon, me distraia com algum assunto.

— Como o quê?

— Qualquer coisa, só quero parar de prestar atenção nos barulhos.

Jon ficou um tempo pensativo, até que o incidente em Amira, dias atrás, lhe veio a mente. Principalmente o que a celestial falou sobre Zek.

— Marko… Você… Acha que a Zek gosta de mim? Digo, mais do que como amigos?

Marko segurou uma risada, quase esquecendo do medo que estava sentindo, e então sussurrou:

— É sério isso? Por que acha que ela fica te seguindo o tempo todo?

— Joanne mandou ela me proteger…

— Ela não faz por obrigação, seu imbecil. Não viu a cara dela quando a deu aquele colar em Amira? Foi a primeira vez que vi aquela mulher sorrir. Ela estava com braço todo arrebentado, mas estava parecendo que teve o melhor dia da vida dela. Ninguém fica tão idiota por um amigo.

— Não sou tão estúpido. Eu já fiquei na dúvida em alguns momentos, mas é que nunca tive certeza, ou coragem de confirmar. Passamos muito tempo juntos na torre de luz desde que cheguei aqui, e foi a primeira pessoa com quem fiz amizade de verdade nesse mundo… O que eu faço agora?

— Como assim?

— Ela não vai ficar infeliz de me ver correndo atrás da Joanne? Eu ficaria se visse Joanne indo atrás de outro cara…

— Está vendo as coisas da forma errada, garoto. Qual das duas você gosta?

— Joanne… Digo, eu acho…

— Acha?

— Eu só pensava na Joanne desde a primeira vez que a vi nesse mundo, lutei para chegar na posição de assistente dela, só para poder ficar a seu lado. Mas não sei, me deixa triste saber que Zek ficaria infeliz se eu estivesse com a Joanne. 

— Interessante… — Marko estava olhando para Jon como se soubesse de algo que ele não sabia.

— E então, o que eu faço?

— Durma com as duas várias vezes até descobrir de qual gosta mais.

— Como é?

— Quer descobrir de qual gosta mais como? Me pediu ajuda com a Joanne e eu dei, agora se não sabe qual das duas te interessa mais, não posso te ajudar, tem que testar sozinho. Se não quer seguir minha dica, arranje outra forma. Mas, honestamente? Não vai descobrir nada pensando, tente se aproximar da Joanne como planejamos, aí vai descobrir se sua adoração por ela se mantém depois que ela não for mais um objeto inalcançável. Homens têm adoração por mulheres que acham que não podem ter, cuidado para não confundir isso com amor.

— Você já se apaixonou por alguém?

— Estou sempre apaixonado. Sou apaixonado por mulheres. Novas, velhas, feias, bonitas, amo todas, mas se puder escolher, fico com as novas e bonitas.

— Acho que isso foi um não…

— Bem, boa noite.

— Boa noite, Jon. E boa noite, <E>.

O braço de Arian mexeu levemente, mas ele parecia estar dormindo, então foi a fantasma movendo ele, na tentativa de responder ao Marko.

— Ela não dorme?

— Fantasmas não dormem, ela fica deitada em cima do Arian por puro fetiche pessoal.

Nesse momento, a mão de Arian se fechou, ele levantou o braço, e mostrou o dedo médio para Marko. Arian continuava com os olhos fechados e respirando profundamente, então era coisa da fantasma. Marko soltou uma longa risada, tinha finalmente conseguido relaxar. Jon também estava ficando mais calmo.

Como ele não acorda com ela mexendo o corpo dele?

Não sei, se outra pessoa tocar nele ele acorda na hora, mas quando é ela, ele continua dormindo como se nada tivesse acontecido. Ele diz que ficar perto dela o acalma, mas isso é extremo até demais.

Como ela se parece?

Pela descrição que ele me passou, é parecida com a forma atual da Lara, mas tem cabelos brancos e olhos vermelhos.

— Espero que tenha uma personalidade melhor que a dela…

— Ela não se importa muito com nada fora seus desejos pessoais e o Arian, então o egoismo é parecido, mas não acho que seja alguém ruim.  

Jon ficou um tempo olhando para Arian tentando imaginar a aparência que Marko descreveu, até que caiu no sono. Pouco depois, foi acordado por batidas na porta. Arian se levantou e a abriu. Era Kadia. Ele pediu para ela esperar e foi colocar sua armadura. Marko continuou dormindo como uma pedra. Jon ficou com os olhos entre abertos observando, até que ele saiu. Estava curioso para saber onde ele ia, mas ao mesmo tempo cansado demais para ir atrás dele. Acabou voltando a dormir. Quando acordou, encontrou Joanne, Zek, Irene e Lara tomando café da manhã. Lara estava com uma cara de quem queria matar alguém. Ele sentou ao lado de Joanne, comeu um pão, se levantou, e foi em direção a porta.

— Onde pensa que vai? — questionou Joanne.

— Vou até a biblioteca da cidade, quero pesquisar algumas coisas.

— Lembra o que eu falei sobre andar em grupo?

— Eu vou com você. 

— Nem pense nisso, Zek. Você não vai sair da minha vista enquanto estivermos por aqui. Vai ficar no hotel comigo e Lara.

—  Sabe onde Kadia e Arian foram? —perguntou Jon.

— Sim, Kadia me disse… Embora não tenha gostado da forma…

— O que ela fez?

— Entrou no meu sonho dizendo que ia investigar a cidade com o Arian, já que os dois não precisam dormir tanto quanto a gente para se recuperarem. Depois ela disse que ia me dar um presente e…

Joanne parou a frase no meio e corou levemente ao olhar para Jon.

— O quê?

— Deixa pra lá.

— Ela fez Joanne ter um sonho erótico com você… A noite toda!

— Irene!

Jon não sabia o que dizer, mas tinha certeza que seu rosto devia estar muito vermelho nesse momento. Irene, por outro lado, estava se acabando de rir.

— Ah, então, eu vou indo…

— Ainda não acho uma boa ideia, mas você já é velho o bastante para tomar suas próprias decisões. Pelo que a recepcionista falou, a cidade é bem tranquila durante a manhã. Mas volte antes de anoitecer.

Jon andou apressado para a saída.

O céu estava nublado, mas não chovia mais. As ruas não tinham muito movimento, então foi andando calmamente, observando as construções, em geral, não muito bonitas, mas bem construídas. No meio do caminho passou por uma carruagem com um senhor de uns 50 anos acenando para as pessoas, e às vezes até parando a carruagem para conversar com uma ou outra. Pensou que era um nobre, mas para sua surpresa, ao questionar um pedestre, descobriu que era o lorde que governava a cidade. Ao que parece, todos pareciam gostar muito dele, que quase todo dia vistoriava a cidade em sua carruagem.

O castelo dele chamava bastante atenção de qualquer parte da cidade, graças a uma das torres da construção, tão alta e larga, que se caísse, poderia destruir boa parte da cidade.

Jon chegou à Biblioteca principal da cidade pouco depois, e foi atrás de tudo que conseguiu encontrar sobre fantasmas. O local era pequeno, equivalente a três casas de médio porte, com dois andares. A bibliotecária, Margaret, uma senhora de uns 60 anos, com cabelos grisalhos e uma roupa simples, ficou furiosa com ele inicialmente, pensando que estava apenas folheando os livros rapidamente ao invés de ler, até que ele começou a responder as perguntas dela sobre cada um deles, confirmando que havia lido tudo. A mulher ficou fascinada com a capacidade dele de lembrar de tantos detalhes e ler naquela velocidade absurda. Ela então começou a bajulá-lo pelo resto do dia, inclusive lhe trazendo almoço e lanche, para ele não ter que parar com sua pesquisa.  Jon ficou tão imerso nas informações que estava adquirindo que esqueceu do tempo, e quando olhou pela janela, notou que já estava anoitecendo.

— Jon, é melhor ir para casa antes que escureça — disse a bibliotecária.

— Você também?

A mulher o olhou sem entender a pergunta.

— A líder do meu grupo falou a mesma coisa hoje pela manhã, me senti como um filho que ela estava cuidando…

— Falamos isso para todos que visitam a cidade, “não fique andando por aí sozinho à noite, os espíritos ficam mais fortes e podem te machucar”. Me falam isso desde pequena… Não sei se é história para assustar crianças, mas tudo de ruim que já ocorreu nesse local até hoje, foi durante a noite, então é melhor seguir a regra.

— Pelo que li aqui, os portais para a dimensão espiritual ficam maiores à noite, e isso afeta todo tipo de espírito…  Falando nisso, Margaret, sabe o que aconteceu com esse livro?

— Como assim?

Jon mostrou a ela um livro que estava segurando. O título era “Espíritos malignos, Exorcismos e Rituais proibidos”.

— Estão faltando várias páginas no meio dele.

— Já estava assim quando comecei a trabalhar aqui.

— Estranho… A parte que mais me interessava devia estar aqui… Tem algum outro livro sobre rituais envolvendo espíritos?

— Não, os livros sobre o assunto foram banidos há vários anos. Todos que tentaram usar o que aprenderam nesses livros acabaram mortos de formas horríveis nos últimos 30 anos e… Jon, vá logo para seu hotel.

— Ah sim… Obrigado por tudo. Devemos ficar por aqui mais um dia, então até amanhã.

— Até.

Assim que saiu da biblioteca a sensação da noite passada voltou. As ruas viraram um deserto, com pouquíssimas pessoas. O vento estava muito forte, e a chuva voltou a cair com força. Jon começou a correr, refazendo o caminho de ida a biblioteca. Estava encharcado, e a chuva ficou tão forte que ficou difícil ver com clareza os prédios na sua frente. Nesse momento, um trovão rasgou os céus, iluminando toda a área, e algo que surpreendeu Jon. No topo de um prédio de 4 andares, pouco a frente dele, havia uma figura em um manto preto todo rasgado, com uma armadura negra desgastada. Era a descrição do mito recente sobre o cavaleiro da morte.

Seja lá o que fosse, parecia estar procurando algo. Do nada, ele começou a saltar de telhado em telhado. Jon, curioso, acabou o seguindo pela rua, e desviando um pouco de sua rota. Havia seguido o homem sem motivo algum, só pela curiosidade de vê-lo mais de perto. Como os relatos sobre ele diziam que nunca fez mal a uma pessoa inocente, não havia motivo para temê-lo. Pouco depois, o perdeu de vista, e notou outra coisa, estava perdido, ao lado de um pequeno beco.

— Ok, isso foi idiota… Agora preciso achar alguém para me orientar de volta ao hotel.

Foi então que sentiu uma forte dor na cabeça, e desmaiou. Quando acordou, estava zonzo, e sua cabeça doía muito. Sobre ele, dois homens e uma mulher remexiam seus bolsos da calça e camisa. O manto azul escuro, marca do templo dos sacerdotes, eles já haviam tirado dele. Aquilo valia um bom dinheiro. Tentou ignorar a dor e o frio que estava sentindo, e levantou, empurrando um dos homens.

— Ele está vivo? Que droga… — reclamou a mulher, que tinha um hálito horrível.

— Vamos embora — falou um dos homens, jogando o manto azul do garoto de volta para ele.

— Encontramos você jogado no beco, pensamos que estava morto. Não roubamos dos vivos. — afirmou a mulher, com um orgulho que Jon não conseguia compreender.

— Mas se não foram vocês que me atacaram, então quem…

Antes que Jon terminasse a frase, uma quantidade absurda de sangue voou em seu rosto.  A mulher do grupo foi decapitada, e caiu em cima dele. Depois um dos homens voou na parede, tendo sua cabeça esmagada, e o terceiro foi jogado para fora do beco, batendo de costas em uma parede do outro lado da rua. Quando caiu no chão, não havia mais vida em seu corpo.

Jon respirava com dificuldade, estava com medo, muito medo, e suas pernas não respondiam aos comandos do seu cérebro. Enquanto tentava arranjar força e coragem para se levantar, viu algo que só piorou a situação. Na poça de água misturada com sangue das pessoas mortas perto dele, conseguiu ver algo que pareciam pegadas, se aproximando lentamente, para seu completo horror.

Seja o que for, estava a menos de 2 metros, e se aproximando. Foi quando parte da parede de madeira ao lado dele explodiu, formando um enorme buraco. As pegadas haviam sumido também. Era sua chance, ele tinha sair dali, mas suas pernas não obedeciam. Nesse momento, um vulto negro caiu na sua frente, com um forte estrondo.

— Corra…  — disse o cavaleiro da morte, com uma voz fantasmagórica, pouco antes de entrar pelo buraco recém formado na parede de madeira e sumir.

Jon não pensou duas vezes. Já mais calmo, se levantou, meio tonto, e saiu do beco. Correu o mais rápido que pode, e em pouco tempo conseguiu se localizar e achar o caminho para o hotel. Quando chegou, sua adrenalina rapidamente caiu, e ele desmaiou perto da recepção.

— Jon, Jon, fala comigo! — a voz de Zek e Joanne o acordaram.

Sua cabeça estava enfaixada, e ele deitado em uma mesa, perto da recepção do hotel. Ele então explicou o que aconteceu. Em seguida, Arian entrou pela recepção, encharcado, e com um corte profundo perto da bochecha.

— Tudo bem com você? — perguntou Joanne.

— Tudo, mas não saiam à noite nessa cidade, é completamente insana a quantidade de espíritos. Tem algo muito errado nesse lugar. Não faz sentido tantos espíritos concentrados em um mesmo local, e nenhum deles fala.

— A Kadia já chegou? 

— Não estava com você?

— Pedi para ela voltar sozinha durante a tarde, tinha algo para fazer. — disse o guardião, se sentando próximo de onde Jon estava deitado.

— Bem, ela ainda não chegou — confirmou Joanne.

— Tiveram algum problema enquanto estive fora?

— Nada anormal, quer dizer, fora os barulhos estranhos que voltaram desde que anoiteceu. Dorian e Marko saíram à tarde e ainda não voltaram também. 

— Marko sabe se virar, não se preocupe com ele.

— E o que aconteceu com o Jon?

— Foi para a biblioteca, quase foi roubado, presenciou três pessoas sendo mortas por algo que não conseguia ver, e diz ter visto o tal cavaleiro da morte andando pela cidade. Espero que aquela bruxa também não esteja aqui… — resumiu Joanne.

Arian não falou nada depois disso, mas parecia preocupado. Jon foi levado para sua cama por Arian, e apagou logo depois. No dia seguinte, acordou se sentindo bem melhor. Zek e Joanne ficaram um tempo com ele usando magia celestial no ferimento, que já estava quase que completamente curado. Ao olhar para o lado, viu Marko dormindo, mas Arian não estava em sua cama. Jon levantou e desceu até o primeiro andar, onde encontrou Arian sentado em uma cadeira, perto da porta, parecendo cansado. A seu lado, Lara, Joanne e Zek conversavam, com uma expressão tensa.

— O que aconteceu? — perguntou o garoto.

— Rodei a cidade toda durante a madrugada mas… Só encontrei isso… — Arian mostrou a espada de Kadia no chão ao lado dele. Estava quebrada ao meio.  — Kadia desapareceu…

Uma sucessão de trovões varreu o céu daquela manhã escura, como se estivessem caçoando do desespero do guardião, que estava com um olhar perdido, sem saber o que fazer.

Próximo: Capítulo 4 – Espíritos e Demônios

Ilustrações de base:

Cidade de Amit