As Crônicas de Arian – Capítulo 29 – Sacrifícios

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Capítulo 29 – Sacrifícios

Arian sabia onde o grupo de mercenários estava, já passou por lá várias vezes. A estátua de Alizen, que Kadia descreveu ao ler a mente do homem, ficava na beira do lago de Juno. Bastava seguir por dentro da floresta, na área mais aberta, cheia de árvores de 30 a 50 metros de altura, que só iam aumentando de tamanho, conforme se adentrava para o interior da mata.

No meio da floresta de Ark haviam algumas árvores gigantes, com mais de 500 metros, e um portal permanente, que dizem ser o responsável pelo crescimento anormal das árvores e vegetação próximas a ele. As árvores do centro de Ark podiam ser vistas a uma enorme distância, e ajudavam as pessoas a se guiarem pela floresta. Aquela área da mata era tranquila, o único perigo era acabar indo na direção errada e adentrar áreas dominadas por licans.

Seu cavalo estava exausto, mas não tinha tempo para ter pena dele. Já se passou um bom tempo desde que os mercenários saquearam aquela cidade, a maldição leva dias para começar a tomar conta do corpo, então Mirian estava ali faz tempo. Aquele homem, ou voltou para pegar o que não conseguiu carregar antes, ou não tinha saído da casa desde o ataque. Ane provavelmente estava morta ou tinha sido vendida, mas não havia opção senão checar.

Estava pensando nisso, quando seu cavalo parou e caiu no chão, tinha chegado a seu limite.

“Devia ter pego um White Astalon em Arcadia, como Marko aconselhou.”

Arian tentou fazê-lo levantar, mas acabou desistindo.

— Desculpe amigo, vou ter que deixá-lo aqui. Se sobreviver, te encontro na volta.

Arian seguiu o resto do caminho correndo, já devia estar próximo. Foi quando começou a ouvir uivos.

Felizmente, não encontrou nenhum lican no caminho, e algum tempo depois, chegou ao acampamento dos mercenários. Lá estava a estátua de Alizen, bastante desgastada pelo tempo. Tinha pelo menos uns 50 metros de altura. Era a deusa mais venerada do Sul, então era normal ter estátuas dela em todo canto, mas aquela era difícil de esquecer, por ser maior que o normal. A volta dela, estavam montadas várias tendas. Era quase um deboche ver um bando de assassinos usando essa localização para uma base temporária. Mas fazia sentido, o lago de um lado, e a floresta de árvores gigantes do outro, davam uma boa proteção. 

Não tinha tempo para uma aproximação furtiva, e tinha homens demais ali para tentar enfrentá-los de frente. Mais de 300, pelo menos, e um número enorme de prisioneiros que pegaram na vila, para vender como escravos. Decidiu pela aproximação mais simples.

“Você é péssimo em negociar, deixa que eu assumo.”

“Você é tão ruim quanto eu…”

“É, mas não sou tão levado pelo emocional… Me colocou no comando a força na hora de decapitar Mirian, mas quando ofereço ajuda, você nega?”

“Eu sei o que estou fazendo… E não me orgulho de passar as coisas para você. Faço isso sem pensar a maioria das vezes, e me arrependo. Dessa vez eu resolvo.”

“Como quiser… ”

Arian foi andando pela beira do lago até a base deles. Um dos vigias o avistou, e, como previsto, vários homens armados foram em direção a ele.

Arian levantou os braços e gritou.

— Quero negociar!

Continuou andando, os homens vieram para o lado dele e o acompanharam até a beirada do acampamento, onde um homem negro, careca e com várias cicatrizes no rosto, o aguardava.

— O que quer negociar? — perguntou o homem.

— Uma garotinha, a pegaram na vila de Riot, perto daqui. 

— Pegamos um monte de gente, seja mais específico.

Arian vislumbrou de leve as mais de 200 pessoas presas por cordas, em estacas de madeira. Respirou fundo, e seus dentes rangeram levemente, enquanto ele tentava manter a calma.

“Não tem como salvar toda aquela gente. Mesmo que entremos na ofensiva, eles vão começar a usar os escravos de reféns, e você mesmo vai acabar tendo que matá-los. Foco! Se não consegue, troque comigo.”

“Quieto…”

— É uma meio-elfa de olhos verdes. Pelos 6 anos de idade, atende pelo nome de Ane.

— É… talvez tenhamos alguém com essa descrição. Mas pode pagar? Nessa idade elas valem uma fortuna para as pessoas certas…

— Quanto quer?

— 80 moedas de ouro.

Arian só tinha 68 com ele.

— Pago 50, é mais que o valor padrão — se começasse baixo, e fosse negociando, talvez 68 fosse o bastante. E se sobrasse, poderia usar para comprar algumas das crianças pegas no vilarejo.

— Mas olha quem temos aqui. Arian, o 7º guardião de Distany. Esse é seu título agora, não é? Eu gostava mais do anterior.

Um homem alto, de pelo menos 1,90 m de altura, pele morena, cabelo branco, e várias tatuagens pelo corpo, veio andando na direção dele. 

— É sério, chefe? — perguntou o homem que estava negociando com Arian.

— Claro que é, nunca vou esquecer do desgraçado que deixou minha filha e a mãe dela morrerem, para salvar uma única garota em Midland.

Arian respirou fundo.

“Parece que as negociações falharam…”

— Não me conhece, eu creio. Não é surpresa, meu pequeno grupo não é dos mais famosos, e só viemos para o Sul recentemente. Mas eu sei tudo sobre você. Meu nome é Malak.

O homem colocou a mão para frente, na intenção de cumprimentá-lo. Arian ignorou, ele perderia completamente a vantagem se o sujeito conseguisse agarrar seu braço.

— Calma, eu não mordo. — disse ele rindo. — O que faz aqui, guardião? Deve ter mais o que fazer, do que perseguir pobres mercenários tentando ganhar a vida.

— Não quis dizer bandidos? Ou alguém pagou para vocês invadirem aquela vila?

“Brilhante, provoque o homem de quem quer comprar algo…”

— São tempos difíceis, se não nos dão serviços, temos que recorrer à pilhagem.

— Ele veio pela meio-elfa, chefe, a que o senhor pegou — disse o homem negro, que estava negociando com Arian antes.

— Mesmo? Por que não disseram logo. Venha comigo, Arian.

“Sabe que é uma armadilha ou coisa parecida, não?”

“Óbvio, mas não é como se eu tivesse opção. Se Ane ainda está viva, seguir esse homem é minha melhor chance de tirá-la dali.”

“Que orgulho… Finalmente usando a cabeça.”

Pararam no meio do acampamento, onde tinham vários homens bebendo e conversando. O que mais chamava atenção, no entanto, era a área de prisioneiros atrás de Malak. Pareciam estar em péssimo estado físico, as crianças principalmente. 

— Urimir, traga a garota, está na minha tenda — disse o homem para um subordinado que o seguia, enquanto olhava fixamente nos olhos de Arian.

— Homens, parem o que estão fazendo, temos um dos sete guardiões de Distany aqui!

Do nada, todo barulho das conversas à volta deles parou.

— Calma, não se assustem, não é um dos mais fortes. Mas por segurança, arqueiros, mirem nele, por favor.

Vários homens correram para pegar suas armas e, pouco depois, Arian tinha pelo menos 30 arqueiros mirando em suas costas, e 20 na sua parte frontal, todos a uma boa distância dele.

— Muito bem. Vamos aos negócios. Quanto ia pagar pela elfa?

— Ofereci 50 moedas.

— Está louco? Quero pelo menos 1000, e agora.

“Eu ri dessa…”

Nunca que uma pessoa sozinha conseguiria carregar aquele valor em moedas de ouro, Malak estava apenas debochando. Não tinha a intenção de vender a garota para ele.

— Não tem? Tudo bem, que tal 50 moedas por todos os nossos prisioneiros? Tem mais de 300 pessoas, ou pelo menos tinham quando as trouxemos, algumas podem ter morrido. Às vezes, meus homens são meio brutos.

— Senhor, está louco? Eles valem muito… — um dos homens de Malak comentou, mas foi interrompido.

— Calado! E então, Arian, vai mesmo desperdiçar a chance de salvar todas essas pessoas por uma mísera garotinha?

Malak falou isso bem alto, com o claro propósito dos prisioneiros ouvirem. Eles rapidamente começaram a gritar por ajuda, até os mercenários próximos os fazerem ficar quietos. Arian olhou de relance o grupo de mulheres e crianças presas, e depois voltou a encarar Malak.

“Não vai me fraquejar agora.”

“Eu fiz uma promessa, e vou cumpri-la.”

— Malak, eu me desculpo pelo que fiz, e se quiser, até me ajoelho, só peço que me entregue a garota.

— Foi o que imaginei… Parece que não mudou em nada seu modo de pensar — Malak começou a rir.

Arian fechou os punhos. Pelo modo que a conversa caminhava, já sabia que a única forma de sair dali com a garota, seria lutando.

— Já quer partir para a violência? Se acalme. Senhores, quem aqui tinha família em Midland?

Alguns levantaram a mão.

— Olha, a Ane chegou. Venha aqui Ane.

Uma garota de uns 6 anos, em um vestido creme, desgastado, veio até eles puxada por um dos subordinados de Malak. Ele a deixou do lado de Malak, que colocou a mão na cabeça da garota, de forma suave. Arian o olhou com ódio.

— Ei, calma, não fiz nada com ela, ainda… Gosto de garotas novas, mas nessa idade, com esse corpo minúsculo, provavelmente, iria matá-la. Só daqui a uns 4 anos, aí ela vai estar no ponto — falou Malak, enquanto passava a mão no cabelo da garota, que fechou os olhos, tentando não chorar.

— Isso, boa garota. Odeio meninas choronas, que bom que aprendeu a lição.

Arian observou que o corpo de Ane estava cheio de feridas e marcas vermelhas. Sua respiração aumentou de ritmo, enquanto sua bota afundou um pouco na grama, conforme contraía os músculos de todo corpo, nervoso.

“Ignore. O importante é que ela está viva, as feridas, físicas ou emocionais, podem ser curadas depois, a prioridade é tirar ela daqui.”

— Ane, já ouviu falar do horrível desastre de Midland, não? Metade da cidade foi destruída, com todos os habitantes da área afetada. Milhares de pessoas morreram, imagine mais de mil vezes o número de pessoas que estão atrás de nós, todas morrendo, do nada.

Arian respirou fundo, já sabia onde aquilo iria dar.

— Pois bem, lhes apresento, cavalheiros, senhores prisioneiros, e Ane, o culpado pela catástrofe de 3 anos atrás, que destruiu metade da cidade de Midland. Esse homem, que algumas pessoas acham que é um herói, matou milhares de pessoas, por uma única garota. Uma vida, por milhares… Não parece muito heroico para mim…

Ane olhou na direção de Arian, como se buscasse uma negação por parte dele.

— É mentira! Arian não faria algo assim! — disse a garota, tentando criar coragem para olhar nos olhos de Malak.

— Será? Você nega, Arian?

“Negue! Não tem por que criar desconfiança na garota de graça.”

“Não vou mentir para ela!”

“Deixa de ser idiota! No que a verdade vai te ajudar aqui?”

Arian não respondeu, só olhou para baixo, pensativo. Como resultado, Ane começou a olhar para ele incrédula.

— Alguns vão alegar que todos cometem erros na vida, mas ele claramente não deve achar que foi um erro. E essa é a ironia, Ane. Sabe o que é ironia? Provavelmente não. Você está julgando esse homem por ter matado tantas pessoas por uma só. O que você não entendeu, é que nesse exato momento, ele está fazendo a mesma coisa, de novo. Ele queria levar apenas você, ao invés de todas as pessoas que estão aí atrás, e provavelmente são seus amigos, não?

Ane parecia confusa, olhando para os prisioneiros atrás dela. A reação deles era variada, alguns olhavam a garota com pena, e outros estavam olhando para Arian, com ódio. O olhar das crianças era a pior parte.

— O quê? Não vai se defender? Dizer que não foi sua culpa? Creio que sabia o que iria acontecer quando tomou aquela decisão.

Arian não respondeu, estava olhando para Ane, que parecia confusa.

— Eu e você nos daríamos muito bem, Arian, somos dois desgraçados egoístas, que miram um objetivo e não estão nem aí para as consequências. Se você fosse um de nós, eu não me incomodaria tanto, talvez fôssemos até amigos. O problema é que, por algum motivo, você é considerado o mocinho.

— Quer mesmo me convencer que tem princípios? — questionou Arian, levemente irritado.

— Claro que tenho. Todo mundo tem sua honra, não importa o quão distorcida ela seja. Todos aqui sabem o que fizeram e o que são. Mas e você, Arian, acha justo que nos chamem de bandidos enquanto um assassino como você anda por aí sendo considerado um herói? Você só se preocupa consigo mesmo, e as pessoas que te interessam. Me diga, você se acha um bom exemplo para as crianças que sonham em ser como você?

— Eu nunca pedi por nada disso! E fiz o que tinha que fazer. O que as pessoas pensam disso não me importa… não mais… Agora, ou você me entrega a garota e saímos todos bem daqui, ou todos vocês vão morrer, nem que eu tenha que ir junto.

— Não, eu fico, leve as pessoas da vila! — disse Ane, enquanto tentava conter as lágrimas que escorriam lentamente pelo seu rosto.

“Por isso ela estava com aquele ar de dúvida? Estava pensando sobre isso?”

“Até nisso a garota lembra a mãe. Podiam ter nascido um pouco mais egoístas…”

— Que corajosa… mas o que te falei sobre chorar, Ane? — falou o líder dos mercenários, com um sorriso no rosto, enquanto a garota tremia de terror, tentando segurar as lágrimas.

— Ane, pode me odiar o quanto quiser depois, mas eu vou te tirar daqui, quer você queira, ou não.

— Está mesmo fazendo a escolha certa?

— Não existe escolha certa, Malak, só a que eu vou me arrepender menos depois. Agora entregue ela, é meu último aviso.

— Estou tentado a te obedecer. Mas que tipo de pai seria eu, se não me vingasse pela morte da minha mulher e filha?

Arian respirou fundo e tirou suas duas espadas médias das costas. Ao olhar em volta, viu um bando de homens formando um grande círculo, enquanto Malak se afastava lentamente dele, segurando Ane pelo pescoço. Claramente, estava a usando de refém.

Os arqueiros eram o maior problema ali, iriam o bombardear de flechas assim que Malak desse a ordem. A distância que os homens de Makak estavam de Arian, no círculo, era exatamente para não serem pegos pelas flechas.

Depois de tomar uma boa distância, Malak deu a ordem.

“Boa sorte…”.

“Eles têm arqueiros dos dois lados. Preciso de um milagre, não sorte…”

— Agora, vamos ver se as lendas sobre você são verdade… Acabem com ele!

As flechas, no entanto, só vieram de um dos lados, então Arian conseguiu defletir e desviar as que iam acertá-lo.

— Mas o quê? — Malak olhou para o outro lado, tentando entender porque só um dos lados disparou. Foi quando começou a ouvir gritos, e viu os arqueiros caindo um atrás do outro, enquanto um vulto negro passava por eles.

— É o cavaleiro da morte! — gritou um dos homens, enquanto vários deles começaram a correr.

Arian perdeu levemente a atenção no combate ao ouvir isso.

“Ignore, seja lá quem for está nos ajudando, por enquanto.”

— É só um idiota vestido de preto, apenas matem ele… Não, seus idiotas! Não se separem, é exatamente o que ele quer!

Coordenados por Malak, vários homens correram até o cavaleiro negro, que tinha terminado de matar os arqueiros.

Arian estava se movimentando de um lado para o outro, para não se deixar ser cercado. Poucos dos homens sabiam lutar bem o bastante para trocarem mais de três a quatro golpes com ele, mas a quantidade era problemática, porque podiam o acertar por todos os lados, e ele tinha que se manter em movimento e girando. Ainda assim, graças a sua armadura estar o protegendo de boa parte dos golpes que não conseguia desviar, estava viável, até que algo inesperado aconteceu. Todos os homens de Malak caíram no chão, e começaram a gemer de dor.

Os olhos de Malak estavam brancos, e ele começou a pronunciar palavras estranhas. Era magia, e com as pessoas caídas… só podia ser…

“É um ritual de invocação!”

A terra a sua volta começou a tremer, e portais se abriram, dos quais vultos negros saíram caminhando. Demônios, mas não sabia de que tipo, estavam envoltos por uma fumaça negra. 

“Ainda estão se formando, não adianta tentar identificar a raça”.

— Achou mesmo que iria para cima de você só com um bando de mercenários que mal chegam a classe D? Nem mesmo a interferência daquele idiota vestido de preto vai fazer diferença…  — disse Malak, com um sorriso macabro no rosto.

Ele colocou a mão na cabeça de Ane, e pronunciou algumas palavras. Uma tatuagem apareceu na testa da garota, e começou a se espalhar pelo corpo. Em seguida, a garota caiu no chão, agonizando de dor, e respirando com dificuldade.

— Ela não tem muito tempo. Agora decida, Arian, qual dos dois vai te causar menos arrependimento depois? Ela morrer enquanto você assiste, lutando contra esses demônios, ou você se matar, e eu interromper a maldição que coloquei nela? Com você morto, não teria motivos para fazer a coitada sofrer.

Antes que Arian pudesse pensar em uma solução, os dois vultos que saíram do portal avançaram na direção dele.

Próximo: Capítulo 30 – Você não é o herói dessa história

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