As Crônicas de Arian – Capítulo 14 – Perspectiva

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Capítulo 14 – Perspectiva

Kadia estava respirando fundo, com uma cara de extremo mau humor, enquanto aguardava na fila de inscrição da Arena. Detestava multidões, mas ao mesmo tempo adorava lutar, então não havia opção. Desejava com todas as forças poder desligar sua habilidade de ler mentes nessas horas. Podia não gastar nada de energia usando ela, já que era algo natural, mas vivia um verdadeiro tormento em determinadas situações. O pensamento de todos à sua volta estava fluindo para sua mente, ao mesmo tempo.

Como não podia bloquear, estava tentando ao menos se concentrar nas mentes da fila uma a uma, na tentativa de conseguir alguma informação útil, ou pelo menos interessante. Até que levou um susto. Uma das mentes não lhe dizia nada. Foi então que o viu: capa verde, estatura mediana, rosto bonito, mas não necessariamente chamativo. Não conseguia pegar nada dele e, por consequência, ao se concentrar só nele, tudo ficou em silêncio, algo que só conseguia se isolando em locais pouco povoados. Era uma sensação fantástica. Ficou tão absorvida nisso que não notou o homem atrás dela passando a mão na sua bunda. Assim que notou, no entanto, tinha menos um concorrente, já que o homem não iria acordar tão cedo depois do soco que levou.

Queria saber mais sobre aquele homem do manto verde. Como estava a bloqueando, afinal? Existiam pessoas que era complicado ler algo, mas isso era devido a treino, ficavam pensando superficialmente em coisas estúpidas, ou mais comumente em um muro de tijolos, como os militares ensinavam. Os pensamentos complexos eram feitos em segundo plano.

Por anos usou disso para tomar vantagem nas interações, sabendo exatamente que tipo de pessoa estava na sua frente. Com Arian, como descobriu que se chamava, não conseguia ver nem mesmo o muro de tijolos, ou um pensamento idiota, não conseguia pegar nada dele a longa distância. E aquele homem não parecia nem se esforçar. Nunca tinha encontrado uma raça com essa característica.

Quando viu a pousada em que ele e seu amigo estavam, tentou alugar um quarto do lado, assim ficaria a uma distância razoável e poderia se concentrar na mente dele sem ninguém ver. Mas estava tudo ocupado. Já escurecendo e sem conseguir sanar sua curiosidade, foi para um outro alojamento.

No dia seguinte, veio a preliminar. Acabou com seus oponentes em um instante, e depois foi rapidamente observar o grupo que Arian estava. Ele lutava bem, embora nem sequer parecesse estar levando aquilo a sério. Devia ser mais forte que o normal para bloquear o soco daquele outro homem com o qual lutou na plataforma, que não era humano.

Logo, no entanto, sua curiosidade se transformou em raiva, quando Arian humilhou uma mulher que o admirava e queria uma luta justa de espadas. Sabia que ela estava exagerando, se ele podia ganhar sem armas, não tinha obrigação de enfrentá-la com elas. Mas aquilo a deixou nervosa mesmo assim. Provavelmente, porque passou por uma situação semelhante quando mais nova.

Ao se aproximar para confrontá-lo, logo depois das preliminares, conseguiu pegar os pensamentos de Marko, e entendeu por que Arian fez aquilo com a garota. No fim das contas, ele não era uma pessoa ruim. Na verdade, começou a achar divertido a apreensão de Arian quanto a ela, então resolveu se manter na ofensiva, mesmo sabendo que ele só queria salvar uma elfa. Outra coisa que a fascinava, era o fato dele ficar olhando para o lado aleatoriamente, e vez ou outra falar sozinho.

No dia seguinte, estava disfarçadamente olhando para Arian, enquanto dividia sua atenção com a luta de Dorian e Marko. Não que fosse tão interessante, Dorian iria ganhar com facilidade usando aquela trapaça. Arian, por outro lado, era tudo, menos óbvio para ela.

Era uma sensação incômoda e boa ao mesmo tempo. Sabia o que as pessoas à sua volta estavam pensando o tempo inteiro. O que as interessa, se tem boas intenções, nada lhe escapava. Quer dizer, nada superficial. Saber detalhes do passado de alguém era mais complexo, e exigia contato físico.

No caso de Arian, talvez com grande concentração fosse possível, mas isso mudaria a cor dos olhos dela. Não que fosse segredo que estava cheio de não humanos nesses torneios, mas eles só faziam vista grossa. Se ficasse claramente provado que você não era humano, seria desqualificado. E no caso dela, que podia ler mentes, seria ainda pior. Era uma habilidade rara, mesmo para demônios. Já ouviu histórias horríveis de vários que foram capturados e escravizados, na tentativa de fazerem uso dessa habilidade. Quase todo Rei pagaria uma fortuna para ter alguém assim, capaz de avaliar e descobrir segredos de qualquer pessoa com quem ele interagisse.

Estava curiosa para testar seus limites e descobrir o que aquele homem a seu lado estava pensando, mas ao mesmo tempo, com medo de ser descoberta. Valia o risco?

Quando finalmente o pegou nas quartas de final, não podia estar mais ansiosa pelo combate. Finalmente teria uma luta justa, contra um adversário cuja mente ela não conseguia ler direito.

Mas se enganou. Não era divertido, na verdade se sentia patética, desde que a luta começou Arian estava dominando completamente o combate. Tinha mais técnica, conseguia prever o que ela iria fazer pelo movimento de suas pernas. Sua força e velocidade, da qual ela tanto se orgulhava, não lhe ameaçavam.

Se sentiu humilhada, como a mulher que Arian derrotou antes. E quando ele a provocou dizendo que nunca iria acertá-lo, não aguentou. Liberou seu potencial completo. Força, agilidade, e outros aspectos. Agora, mesmo que só superficialmente, conseguia pegar até pensamentos vagos e instintivos daquele homem. E felizmente, a aquela distância das arquibancadas, a maioria não iria notar seus olhos brilhando.

Para sua surpresa, no entanto, Arian não se desesperou. Era uma das lutas mais difíceis que ela já teve desde que chegou naquele mundo. Kadia deu um sorriso ao notar que, de fato, estava se divertindo, mesmo que se sentisse trapaceando. E assim continuou, até que seu adversário começou a pensar de forma totalmente sem sentido, e então…

— Então você lê mentes? É a segunda vez que vejo… — disse Arian, antes de ser interrompido pela sucessão repentina de ataques de Kadia.

Aquilo que sempre tentou esconder. Demônios eram mal vistos no mundo humano, mas isso não era problema, e sim ele saber de sua rara habilidade. Não era mais uma luta por diversão, era questão de vida ou morte. Se aquele homem revelasse seu segredo seria desclassificada, e provavelmente, capturada. Não podia arriscar. Ele tinha que morrer!

— Espere… — Arian tentou falar.

Kadia não estava mais escutando, só se concentrava no que ele iria fazer para desviar de seus golpes. Se ele achava que podia decorar seus padrões de ataque, bastava fazer algo inesperado. Tentou acertar um soco em sua cabeça, mas ele bloqueou com o bracelete. Do que era feito aquilo? Metal comum quebraria com facilidade.

Apesar de ter seu ataque frustrado, Arian ao menos foi arremessado e estava no chão. Kadia foi com tudo para matá-lo, mas ele se levantou antes dela chegar, agarrou seu braço e a jogou ao chão, usando uma técnica de luta corpo a corpo. Assim que subiu em cima dela e tocou sua pele, tentando segurar seus braços, Kadia não pensou duas vezes, usou magia para passar uma forte sensação de dor ao cérebro do adversário. Se usasse rapidamente, não seria o bastante para descer de 70% de energia.

Assim que ele foi ao chão, com a mão na cabeça, acertou nele um chute pra tirá-lo de cima dela. Mas ele rapidamente se recuperou e voltou correndo em sua direção, enquanto a garota corria até ele com a espada longa em punho.

Era ridículo como ele ainda conseguia lutar depois de tudo aquilo. Seja lá qual fosse sua raça, era muito mais resistente que um humano. Não conseguia mais ler a mente dele direito, já que estava frustrada e nervosa demais para se concentrar. Ficando mais e mais irritada, acabou fazendo um movimento em falso, o que deu a oportunidade a Arian de contra-atacar, logo depois de desviar a espada dela. A segunda espada de Arian estava vindo rápido na direção do seu pescoço. “Dane-se”, pensou Kadia, preferia morrer a ser escravizada por nobres. E se fosse acabar ali, ao menos morreria em um belo combate, levando seu adversário junto para o túmulo.

Kadia girou sua espada com toda a força contra à lateral do corpo de Arian, que para surpresa dela, parou o ataque em direção a sua garganta, tentando apenas bloquear a espada indo de encontro ao seu abdômen. As espadas dele não aguentaram o golpe e foram estilhaçadas. O homem foi arremessado vários metros, e parecia estar gravemente ferido. Era hora de acabar com isso.

— Adeus! — disse Kadia, correndo em direção a Arian para o golpe final. Suas espadas estavam quebradas, ele só tinha mais uma na cintura.

Quando ela chegou a poucos metros dele, o homem deu um salto para frente, enquanto tirava sua espada bastarda da cintura em uma velocidade absurda.

Um barulho de trovão ecoou pela Arena enquanto a arma de Kadia era esmigalhada pela espada bastarda de Arian. E com os fragmentos da arma ainda no ar, Arian girou, vindo com a espada mirando o pescoço de Kadia. Ela fechou os olhos, era o fim.

Mas o fim não veio.

— P-por favor. Se renda. E-eu… — disse Arian, enquanto vomitava sangue, estava quase desmaiando.

Ele havia parado sua espada a centímetros do pescoço de Kadia.

— Não vou con… tar… – Tentou completar a frase, enquanto caiu de joelhos na frente de Kadia, provavelmente devido a dor e perda de sangue.

Mas ele não precisava dizer, Kadia conseguiu ler seu pensamento claramente agora. Ele estava o gritando desesperadamente para ela: “Eu não vou contar! Eu não vou contar! Por favor, se renda!”.

Kadia fechou os olhos, baixou os braços e soltou o que restava de sua espada.

— Eu me rendo — anunciou com uma voz firme, mas que ao mesmo tempo passava tristeza.

No desespero, julgou errado seu adversário, que nunca teve a intenção de revelar seu segredo. Física e psicologicamente se sentia derrotada. Não tinha mais vontade alguma de lutar.

— Arian é o vencedor!  — Gritou o narrador.

A plateia fez um barulho ensurdecedor, tendo recebido o combate mais brutal e inesperado até aquele momento. Enquanto isso, o homem na frente de Kadia caiu desmaiado, com sangue escorrendo por um enorme corte na lateral do abdômen.

— Ei, Arian, Arian! Não morra agora… Eu quero uma revanche! — Gritou ela, se ajoelhando ao lado do corpo de Arian. Ao notar que tinha desmaiado, segurou o homem nos braços com facilidade, e correu em direção a ala de cuidados médicos. Se fosse esperar a equipe da Arena chegar, ele iria morrer.

Enquanto corria, os pensamentos do apresentador do torneio ecoaram rapidamente pela mente de Kadia. O primeiro a fez rir, ele estava incomodado ao ver uma mulher carregando um homem maior que ela no colo. Mas o segundo pensamento era uma dúvida que ambos compartilhavam:  “Mesmo que sobrevivesse, como Arian iria lutar a final, que era no dia seguinte, naquelas condições? ”

Ilustração oficial da batalha por Diego Cunha:

 

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