Nijigahara Holograph – Vidas que se Entrelaçam

Sinopse: Quando era criança, Suzuki transferiu-se para uma nova escola primária, onde se encontrou no meio de uma intrincada rede de relacionamentos entre seus companheiros de classe. No presente, sua condição permanece inalterada, enquanto seus colegas certamente não. À medida que saltamos para trás e para frente no tempo para desvendar a história, uma explosão súbita na população de borboletas no presente parece misteriosamente profética quando Suzuki decide fazer uma viagem de volta à sua antiga escola (ANN).

Em determinado capítulo de suas várias histórias, Nijigahara Holograph apresenta o que aparenta ser uma família tradicional e amorosa a desfrutar o pôr-do-sol em um típico campo japonês, até que a seguinte conversa se desenrola entre o casal, onde o homem descreve um sonho metafísico que teve para sua esposa:

– (…) eu ia mais fundo, então escutei uma voz. Deve ter sido Deus. Disse estar cansado do mundo, e, um dia, todo mundo iria apenas desaparecer. Esse é o fim do mundo?

– Não é o fim. É Eterno.

– O-o quê? Isso quer dizer que eu devo sofrer pela eternidade? Me diga que não é isso…não existe nenhum Deus!

O que se vê no próximo quadro é uma ruptura extrema da percepção anterior que tínhamos da cena: o homem a estrangular sua parceira. O reflexivo comentário da mulher provoca um pânico no marido, que parece atônito com a sugestão de ter de viver ao infinito em sua condição atual.

Esse ato é o que desencadeia uma sucessão de outros acontecimentos que, se vistos em singularidade, parecem ínfimos como nossa existência no universo. Mas, em plenitude, são chaves para o destino de um pequeno emaranhado de pessoas, estes os habitantes centrais do mangá Nijigahara Holograph (Inio Asano, 2003, recém-publicado em nossas terras pela editora JBC), em clara alusão ao efeito borboleta, como tantas outras obras fizeram (Efeito Borboleta, Confessions, Babel, Crash, Corra Lola, Corra, entre outros).

O mais curioso, entretanto, é que mesmo que seja o gatilho para o que há de vir, esta cena não dá início ao mangá, e sim é revelado apenas em seu epílogo. O que inicialmente pode soar confuso é, genialmente, um artifício de Asano, de lógica interna que será compreensível para os leitores, para nortear quem se arriscar adentrar neste esforço de sua criatividade.

Ainda que jamais possa ser considerado um profissional de fácil assimilação, em sua segunda obra, o aclamado Inio demonstra algumas das características que o tornaram uma das vozes da geração: o retrato cru da sociedade contemporânea, centrada em seus conterrâneos, mas adaptativamente transposta para o Ocidente, uma habilidade ímpar para retratar angustias que assolam o interior de seus personagens, assim como a maestria com que dialoga a ambiguidade que nos preenche de forma realista, porém sempre com a sensatez de apresentar recursos para não tornar isto um pessimismo cínico.

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Nijigahara Holograph tem tudo isso, mas apresenta uma complexidade além pela forma como a construção da narrativa é organizada. E aqui voltamos ao fato do diálogo que inicia a análise, que ortodoxamente abriria a história, mas é mostrada em seu fim; pois assim como os residentes de suas páginas, nós estamos todos perdidos e confusos em nossos papeis quanto pessoas. As respostas para um problema não surgem logo quando o obstáculo está à mostra. Em comparação esdrúxula, porém rapidamente identificável, é como a retórica para uma discussão que só pensamos horas após, preferencialmente durante o banho.

Nosso corpo reside no presente, mas nossa mente é condicionada a pensar no futuro apoiada pelo passado, que serve tanto como ensinamento quanto como cruz. Então, surge outra frase da obra e que denota bem isso:

“(…) por que será que hoje as memórias do passado vêm a mim como se fosse ontem? É como se passado e presente estivessem se fundindo”.

Somos, creio ser unânime dizer, reféns de nossas experiências. Tanto para formar nosso caráter quanto para ditar nossas decisões. E é indescritivelmente irritante notar que somos unicamente responsáveis por aquilo que escolhemos, pois quando tomamos essa decisão, ela muitas vezes se mostrará equivocada lá na frente. Como fica visível na citação do casal, outro elemento crucial no catálogo de Asano, é que não há um Deus onde nos balizarmos e depositarmos uma fé cega para endireitar nosso destino assim que algum trilho se deslocar. Isso é pertinente a nossa raça.

Apesar de fazer referências ao Taoísmo, é possível, em relação ao parágrafo acima, fazer relação com o existencialismo de Sartre e pensamentos de Nietzsche. O segundo, no polêmico ‘Deus está morto’, deixa claro como somos condutores de nós mesmos, imperativamente responsáveis para com nossa vida. Sua resposta para isso é o ‘Eterno Retorno”, onde devemos fazer que nossa passagem terrena valha a pena ser vivida em um ciclo interminável. O objetivo de sua filosofia é expor o quão livre o humano é para consigo mesmo. Quem não quer a liberdade, não? Porém, segundo Sartre e outros existencialistas, essa falta de amarras nos condena à liberdade, pois o conhecimento de que a menor das ações aqui pode acarretar em calamidades inimagináveis em breve nos deixa numa eterna angústia e desespero para agirmos. Se nos considerarmos responsáveis pelo todo – pois Asano e o existencialismo trabalham sob o princípio de que nossas escolhas não discorram em consequências pessoais, e sim no conjunto -, a sonhada liberdade torna-se um fardo acachapante, claustrofóbico.

Basicamente, sob a regência de nós mesmos, sem uma divindade antropomórfica para nos resguardar, estamos confinados, “abandonados” na terra (e até por isso, várias vezes vemos os personagens desenhados por trás de grades, presos em sua existência), pequenos micros com o absurdo poder de afetar o macro. Nesta sina, sem a promessa da felicidade incondicional à espreita no fim do túnel, ficamos aturdidos, pois o que nos aguarda no tal túnel é algo nefasto, tenebroso. No íntimo dos becos de nossa personalidade, encontramos um lado inimaginável de nós mesmos: nossa ambiguidade, pois para todo yang, há o yin, e como toda polaridade oposta, elas se atraem.

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E é através das amarguras e misérias de seus personagens, na tentativa de fugir das camadas mais podres encravadas no âmago, ou talvez até de aceitar o quão podre são (somos) – pois assim como um morto não sabe que esta morto, o vilão não se vê nesse papel; há sempre um propósito em cada um -, Asano discute a ambivalência do ser e como almas mundanas estão intrinsecamente ligadas, mesmo que jamais venham a saber isso ou ao menos como aconteceu.

Sem entregar o roteiro, façamos um exemplo: você vê uma pessoa derrubar R$20,00 do bolso e, partindo do pressuposto de que “achado não é roubado”, decide garantir o orçamento pra próxima ida ao supermercado. Digamos, então, que a pessoa que perdeu a nota só se depara com seu azar quando se fez necessário utilizar a quantia para, imaginamos, o ônibus. Ela não consegue lograr o cobrador nem atiçar a empatia de terceiros. Então, não consegue ir para uma entrevista de emprego, não há celular para avisar e talvez tenha sido a única resposta obtida com um salário condizente a suas necessidades de mãe solteira com pai desaparecido e não assumido, o que a impede de receber qualquer carência governamental. Assim, ao menos algumas semanas se passam sem que a mãe possa repor satisfatoriamente a alimentação de sua prole. Isso pode levar à doenças, à vitimização das crianças pela inocente brutalidade infantil e a recursos escusos e desesperados para livrar-se da situação. São inimagináveis as decorrências. Não apenas você teve um papel nisso, como jamais saberá, assim como os transeuntes que não a emprestaram dinheiro. Inclusive, as escolhas da família afetarão outros semelhantes em níveis variados.

Pode parecer excepcional, mas não podemos negar sua viabilidade. É pertinente a cada um saber de algum simples detalhe que, se diferente, poderia ter ocasionado outros Ses e aberto dimensões desconhecidas em nossa vida – algo também elaborado no mangá.

Com seu traçado realista, em ressonância com a mensagem que quer passar, Asano é fiel ao que vemos: um estupro, algo brutal, não é belo de se ver, ao contrário de um bando de borboletas à luz do luar. Um mesmo par de pessoas pode compor um quadro belo e tenro de sentimento benéfico mútuo, mas igualmente outro de violência e repulsa.

Em uma claudicante, misteriosa e dúbia estrada, o acerto de Asano e que o difere de muitos colegas de profissão é a firmeza e sobriedade com que retrata não apenas aquilo que quer, mas aquilo que realmente é, mesmo que para isso tenha de recorrer ao bom e velho sobrenatural.

 

Carlos Dalla Corte

Curto 6 coisas: animes, cinema, escrever, k-pop, ler e reclamar. Juntei todas e criei um blog.