Perfect Blue: Um Clássico do Suspense Psicológico

 

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Alerta: o texto possui alguns spoilers da película.

É normal que em algum ponto de nossa vida, surja um desejo ardente de ir além. Seja advindo da maturidade ou pelo enfastiar da mesmice, a ânsia por estender nossos limites, descobrir até onde podemos ir, é quase inerente. Essa mudança exige coragem, é claro. O passo de largar o porto seguro pode parecer o mais difícil a se tomar, mas quando finalmente o damos, é assustador como o pior ainda está por vir. Rumar para o desconhecido, para o novo, nos desestrutura e exige um esforço primordial para buscar se estabelecer em novas empreitadas, e sem jamais obter a certeza se realmente fizemos o certo – e se a iniciativa dará resultado.

Mima é uma dessas pessoas, uma jovem que busca dar uma nova guinada em sua vida, expandir seu talento e comprovar que não é apenas um belo rosto. Ela larga o grupo Idol Cham, onde era idolatrada, para tentar a carreira de atriz. Porém, está mudança logo demonstra suas consequências, com a insegurança de estar em um novo ramo, mas também pelos fãs que não perdoarão tão fácil a despedida de sua ídola.

É por este molde que Satoshi Kon constrói Perfect Blue e discute diversos temas. E é claro, com a marca autoral e peculiar do diretor.

Mima é uma celebridade, e como tal, vive exposta. A mudança de ares da garota atrai revistas e instiga os fãs. Ela logo se vê sufocada pela pressão para obter sucesso, agradar os produtores, sempre convivendo com o extenuante medo da hesitação. Será que tomou a decisão certa? O psicológico se deteriora de fragilidade, e aliado à falta de orientação, Mima torna-se submissa a mídia qual está, sujeita aos mais vulgares meios para atingir a fama. Assim, o sonho vira pesadelo, as incertezas crescem, e logo, conforme sua sanidade parece definhar, realidade e delírios se mesclam.

A psique de Mima é a espinha dorsal de Perfect Blue, e a transição da personagem é perfeitamente desenvolvida nesse misto de sonhos e realidade tão presentes na filmografia de Satoshi. O diretor evita nos fazer passivos na trama, e é com a metalinguagem que nos faz parte dela. No Dorama(intitulado Double Bind) que filma, Mima é uma assassina com transtorno dissociativo de personalidade. Ou seja, ela possui uma dupla personalidade, e comete crimes utilizando seu duplo.

Já em seus delírios, enquanto agoniza acerca da escolha que tomou, ela frequentemente se depara com sua versão Idol. Curiosamente, crimes ocorrem com pessoas envolvidas na produção do drama. Mas ao invés de convergir todas as evidências para Mima, o que seria óbvio, Satoshi envolve outros suspeitos, como um fã stalker que se recusa a aceitar a nova profissão da ex-estrela pop. Assim, com duvida entre o que é ficção ou não, o cineasta nos torna cúmplices da protagonista e deixa o desenrolar do enredo ainda mais intrigante.
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A garota, apesar de provável suspeita, é sempre mostrada como uma vítima de sua hesitação e da perversidade da indústria e sociedade que a cercam. E a direção mais uma vez merece mérito nesse quesito. Mima é, várias vezes, filmada através de câmeras, lentes e reflexos, não diretamente. É como se seus vários “Eus” estivessem em cena: o lado cantora, o lado atriz – e talvez o lado criminoso. Ela não é uma pessoa homogênea, e sim alguém que passa por um turbulento processo de passagem, uma figura multifacetada. Esse artifício de lentes também nos coloca no lugar da mídia, já que a vemos por trás de uma tela, sempre a julgar o comportamento e atitudes da mesma.

Ainda que sirva para todos nós, essa crítica sobre o cidadão juiz possui uma importância ímpar no contexto nipônico. Ser Idol não é fácil, pois a rotina é absurda e abusiva, exigindo disciplina mental, alimentar e física da pessoa, além de restringir vários prazeres. Muitas vezes, inclusive, ocorre a proibição da(o) Idol manter um relacionamento, para não desiludir os fãs, pois serve também como uma espécia de ilusão para muitas pessoas, e assim, deve manter uma conduta imaculada e pura.

Daí os questionamentos que Mima tem consigo mesmo após filmar uma cena de estupro, como se tivesse violando seu corpo e sua áurea até então impecável. Um retrato de alguém proveniente de tantos dogmas. É como se a Idol fosse um produto, propriedade do fã. Algo ressaltado em uma rápida cena logo no início do filme. Todos nós adoramos e vivemos do entretenimento, e o diretor expõe seu lado podre e como nós, que alimentamos a indústria, somos igualmente culpados.

A Idol Produto

A Idol Produto

Como bom cinéfilo que era(faleceu em 2010), Satoshi ainda brinca com infindáveis referências, como a Hitchcock, Acusados, de Jonathan Kaplan, e principalmente, Suspiria, de Dario Argento. E assim como no longa do italiano, utiliza o vermelho como importante fator gráfico e simbólico. O longa não é nada módico na violência – é uma animação, o que não significa que seja para crianças. O vermelho é introduzido em quadros pontuais, sempre destoando no ambiente, preenchido de cinza e azul em paletas opacas e sem vida. Representa igualmente uma importante função narrativa e  não meramente estética, seja premeditar tragédia ou um momento instável de Mima.

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Satoshi evita o máximo nos jogar respostas, e a montagem contribui muito para isso. Em várias cenas, quando pensamos estarmos a ver realidade ou ilusão, somos brindados com uma continuidade que mostra justamente o contrário, através de elipses inteligentes e imprevisíveis. Assim, a partir de certo ponto, torna-se impossível discernir o que se passa, e ficamos tão perdidos e perturbados quanto Mima.

Seria mentira dizer que a animação acompanha a primazia de sua história e direção, já que está é datada e com traços realistas que podem soar feios para os acostumados com animes recentes. Mas o fato é que aqui, o que realmente importa é justamente a história e como é contada, e se assimilado isso, Perfect Blue torna-se uma experiência inesquecível e muito, muito acima da média.

O final pode soar explanado demais para uma fita que brincou tanto com o subjetivo e vastas possibilidades, mas não tira o esmero do resultado final. Um thriller psicológico e psicodélico fruto da mente de um gênio do gênero, eficiente em nos envolver na trama, mas também com um vasto conteúdo de relevância social, além de ser franco ao criticar não apenas a mídia, mas a sociedade, e não devemos esquecer que somos membros dela.

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Carlos Dalla Corte

Curto 6 coisas: animes, cinema, escrever, k-pop, ler e reclamar. Juntei todas e criei um blog.

22 Resultados

  1. DouglasLK disse:

    Correria para assistir esse anime sem pensar duas vezes se a crítica tivesse sido feita pelo Marco, mas como foi feita pelo Carlos, e conhecendo seu gosto por dramas pesados, é melhor eu passar primeiro na farmácia e comprar antidepressivos.
    PS: não terminei de ler o texto para não tomar spoillers. Carlos, poderia colocar a sinopse da obra separada do texto para sabermos do que ela trata?

    • Dalla Corte disse:

      O filme não é depressivo ou triste (não na narrativa, apenas a realidade que discute), mas sim brutal e complexo.

      Ele é cheio de metáforas, então a plot linear é quase inútil. Não recomendo tecer sua percepção por ela.

      Copiada do AdoroCinema:

      “Mima Kirigoe é uma cantora pop de uma banda CHAM!, mas decide se tornar uma atriz, tendo como primeiro projeto uma série de crime dramática. Muitos de seus fãs ficam chateados com sua decisão e uns deles, obcecado por Mima, começa a perseguí-la e a enviar mensagens a chamando de traidora. Decidida a ignorar tais fatos, ela se preocupa com sua personagem na série que sofrerá um sequestro em um dos episódios. Sem ter noção da possibilidade de ser afetada pela cena, Mima fica traumatizada e começa a não saber distinguir a realidade da ficção. Seu problema maior começa quando seus colegas de trabalho são assassinados e as provas apontam para ela mesma.”

  2. Sinceramente Carlos, gosto muito de sua review, gostei bastante dessa, me deu vontade de ver a obra só de ler, parabéns, quando tiver um tempo acho que me atrevo a ver o anime :V Não tenho problema com animes antigos.

  3. Emanuel Moreira disse:

    Boa review,ja tinha ouvido falar sa obra,mas sou meio vulnerável a gore,talvez um dia eu veja,tem uma sinopse bem interessante.So a capa do anime ja mete medo.
    Carlos,me desculpa chamar de peculiar,mas eu achei que como você tem senso crítico muito forte,achei que você não gostava da trilogia de filmes de madoka mágica 😡

  4. Michel Heiwajima disse:

    Muito boa a crítica.
    O Perfect Blue é um filme sobre as pessoas que mergulham no mundo dos sonhos e não conseguem mais distinguir o real do fictício. No argumento do sonho de René Descartes, ele diz que o ato de sonhar providencia evidência preliminar de que os sentidos através dos quais confiamos para distinguir realidade de ilusão não devem ser plenamente confiáveis, e como tal, qualquer estado que dependa dos sentidos devem ser, no mínimo, cuidadosamente examinados e testados com rigor para determinar se algo é de fato “real”.
    No Japão a indústria das ídols acaba criando ilusões, uma fantasia sobre a realidade e os indivíduos, se mergulha tanto na idealização que se perde a capacidade de saber o que é real e o que é ficção.
    Satoshi Kon disse certa vez algo bem significativo, quando comentou acerca de um das mensagens que ele tentou passar com Paprika: “No Japão, não apenas crianças, mas adultos com seus 20/30 anos escolhem os animes e mangás como um meio de fuga de suas vidas reais. Mas acho que há um perigo nisso também. Se você entrar nesse mundo, ele é muito vivo e colorido, e sedutor, mas há grandes armadilhas ao se adentrar nesse universo, principalmente se você deixar o seu mundo real se deteriorar em detrimento dele.”

  5. Yhan disse:

    Caramba, é uma review e tanto (Não li inteira porque não quero pegar muito spoiler), eu ainda não vi o filme, na realidade é um filme que quero ver a muito tempo, pelos seus vários elogios durante anos, já faz um tempo que deixei ele na lista abandonado, mas depois de ler um pouco a review eu animei bastante para ver o filme, adoro esse tipo de drama.
    O Satoshi não é o mesmo que fez o filme Paprika? Porque adorei aquele filme.
    Posso estar enganado mas já o ouvi falar que aquele filme americano “Cisne Negro”, pegou alguns elementos de Perfect Blue…

  6. Mônica Azevedo disse:

    Pra min esse filme é uma obra de arte dos animes!

    Ótima análise!

  7. Tiago Alves Sabino disse:

    Vou tentar ver antes do final de semana e depois venho dar minha opinião, agradeço pela recomendação.

  8. Leonardo Henrique disse:

    Não li td por medo de spoiler, mas até onde li é um ótimo texto e atiçou minha curiosidade, irei assistir com certeza, obg.

  9. Zerefe disse:

    Esse filme é muito viajado,tem que assistir umas duas vezes pra pegar ele totalmente.Eu não sou lá muito fã desses filmes/animes confusos,prefiro algo que faça me envolver emocionalmente com os personagens.Tava fluindo legal até certa parte,depois virou um exagero só que não dava pra distinguir o que era real ou não.A animação datada não chega a ser um incomodo,mas a trilha sonora achei fraca.Minha nota pra Perfect Blue seria um 8,0.

  10. Wendel Santos disse:

    Engraçado é que eu tinha assistido cisne negro antes de perfect blue, e fui assistir os dois completamente as cegas. Quando assisti perfect blue, tive aquela imediata sensação de deja-vu, pelo fato da narrativa ser extremamente parecida com a de cisne negro.

    E assim como cisne negro, fui surpreendido no final, já que na metade do filme, já tinha desistido de criar palpites em relação ao final devido a quantidade de twists que se cria do meio pro fim.

    Um filme muito bom de fato. Tanto que tenho que assistir os outros filmes dele.

    E Mythological Moment Detected (desculpa, não podia deixar essa passar).

  11. Tio Gon Do Hiato disse:

    Um dos melhores filmes de animes, minha nota: 9/10 ou 8.5/10

  12. Tenshi_Sama disse:

    Um dos melhores filmes que já vi. Ótima matéria !

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