As Crônicas de Arian – Capítulo 9 – Arcadia

Anterior: Capítulo 8 – O Guardião, a Fantasma e o Bêbado

Índice com todos os capítulos: aqui

Capítulo 9 – Arcadia

O cheiro de toda aquela gente na fila suando não era agradável, e só estava piorando com o tempo. Ao menos o chão da cidade era todo de pedra, o que a tornava naturalmente mais limpa. Era uma das poucas cidades do Sul daquele porte que não fedia. Embora nada comparado a cidade de Amira, onde você podia ser preso por jogar lixo no chão, graças a obsessão do rei por limpeza. À volta deles tinham um bando de tendas, vendendo de bijuterias até comida. <E> estava distraída, observando cada uma delas.

— Seu mentiroso filho da mãe! — Marko olhava emburrado para Arian, ambos em uma fila enorme de pessoas.

Estavam na frente da grande arena de Arcadia, o maior palco de shows do Sul, tanto os violentos quanto filosóficos. Tinha espaço para 50 mil pessoas nas arquibancadas. O centro a céu aberto era enorme, com perto de 800 metros quadrados. Era possível vê-la de qualquer ponto da cidade, com seus 50 metros de altura e formato circular. O local estava cheio de gente se inscrevendo para o torneio, anunciado faz 1 mês.

Ilustração aproximada da “Arena” – Principal atração de Arcadia

— Calma aí, eu não menti, eu disse que tinha um prêmio em dinheiro, e tinha. Veja a elfa como… um bônus? — disse Arian, se fazendo de bobo, enquanto esperava impaciente a fila andar, no meio do sol da tarde.

— Como pode ser um bônus, se é só o que te interessa? Eu tô fora, quero relaxar, e não entrar em mais uma de suas sagas para salvar uma elfa — Marko virou de costas e começou a caminhar para o centro da cidade.

— Espera! Eu preciso da sua ajuda. Eu pago se quiser, e você vai se divertir de qualquer forma — gritou Arian, sem sair da fila. 

Ao escutar isso, Marko voltou para o lado de Arian na fila, com um olhar de satisfação.

— Agora a conversa está ficando interessante… Quanto vai me pagar? 

— Espera, estava esperando uma proposta?

— Filhos para sustentar, lembra?

— Seu…

— Ei, você me enganou primeiro, só estou me vingando.

— Que tal economizar na bebida e mulheres em vez de me extorquir?

— E a oferta é… — disse, enquanto ameaçava sair da fila com o corpo.

— O dobro do pagamento por missões comuns de Distany…

— Pouco, aumenta pra cinco.

— Isso são 2 anos de trabalho.

— Não, é você desesperado, e eu não querendo perder a oportunidade — retrucou, com um sorriso maléfico no rosto.

— Três vezes.

— Estou indo embora…. — falou cantando, enquanto virava de costas novamente.

— Certo!

Marko virou de novo, estava rindo sem parar.

— Caramba, como você é fácil… Trato feito. Mas saiba que, como seu amigo, te ajudaria de qualquer forma.

— Aham… — Agora Arian é que estava de mau humor.

Marko parou de rir e ficou sério por um momento.

— É isso mesmo que quer da sua vida? Eu tenho filhos pra sustentar em mais locais do que posso contar, e mesmo assim me sinto aproveitando mais a vida que você. Quer mesmo morrer sendo lembrado apenas por isso? O grande guardião que salva meio-elfas? Não se sente meio… vazio?

Arian ficou perplexo com a pergunta, não esperava algo assim vindo dele, que dificilmente levava algo a sério.

A pergunta era pouco compreensiva para ele. Que outras opções tinham? Quer dizer, não sobrara nada, fora isso, para mantê-lo feliz consigo mesmo.

Marko suspirou vendo o rosto perplexo de Arian para a pergunta.

— Certo, como quer fazer isso?

— Entramos, e quem ganhar pega o prêmio, mas deixa a elfa ir. Com você, as chances de conseguir a Nya dobram.

— Nya? Pera, já conhece essa elfa?

— A conheci 2 meses atrás, até que foi capturada por guardas do Sul, pensando que ela era uma espiã do Norte. Só recentemente descobri que veio parar em Arcadia, e iria ser o prêmio do torneio, junto às 100 moedas de ouro.

— Como consegue essas informações?

— Parte do dinheiro de Distany é usada para manter olhos em todo Sul e parte do Norte, a procura de potenciais habitantes para a cidade. Servem para coletar esse tipo de informação também. Tem pelo menos 50 pessoas no Sul sendo muito bem pagas para isso — falou desinteressado, enquanto instintivamente procurava <E>.

A garota estava babando perto de uma barraca de frutas. Tinha alguma adoração estranha por morangos.

— Aquele velho realmente está levando sua obsessão a outro nível. Vocês maníacos por meio-elfos devem se dar bem.

Arian sorriu lembrando do amigo, e fundador, da cidade dos meio-elfos. Um homem que perdeu a filha, Distany, uma meio-elfa, morta por mercenários. Depois de superar a perda, resolveu fazer do objetivo de sua vida ajudar essa raça. Além de conseguir eternizar o nome da filha no processo.

— Sim, ele é uma ótima pessoa. Apesar do hábito chato de ficar perseguindo algumas garotas parecidas com sua filha pela cidade, contando suas histórias de vida, em vez de deixá-las trabalhar em paz.

— Vocês são dois doentes…

— Ei, eu nunca persegui nenhuma. Só estou tentando… – A fala parou por aí, não queria dizer o resto.

— Certo, vamos nos inscrever então. Há tempos que não tenho uma boa luta, isso vai ser divertido.

<E> estava pulando de um lado para o outro em volta deles. Arian não sabia se era excitação, ou impaciência pela demora. Minutos depois, voltou a brincar de copiar as várias armaduras dos participantes na fila. Não ficavam lá muito boas em uma criança de 10 anos. Ela podia ajustar o tamanho, mas o design não.

— Por que não copia um vestido em vez disso? — Questionou Arian, analisando a armadura feia que ela tinha acabado de copiar para seu corpo.

<E> fez uma careta para ele como resposta, enquanto copiava uma mini versão de sua espada em frangalhos e brincava de cortar o ar.

Foi quando, do nada, a alguns metros à frente, um homem saiu voando 15 metros para a direita, e caiu no chão desacordado.

— Se alguém mais tentar me tocar, não vai ser só alguns dentes que vão perder — disse uma mulher de cabelo preto.

Cabelo longo, até a cintura. Não dava para ver o rosto direito, mas usava uma roupa de couro preta colada ao corpo, que a deixava impressionantemente sexy. 

— Nossa! Espero não pegar ela nas preliminares, essa merece um contra um— observou Marko.

Vendo que perdeu a atenção, <E> começou a cutucar Arian, mostrando a roupa copiada da mulher de preto, o que fez Arian começar a rir. 

— Acredite <E>, um dia vai ficar muito sexy nessa roupa. Mas esse momento ainda não chegou.

— Você realmente não tem jeito com mulheres — falou Marko, em desaprovação.

A garota fez uma cara de decepção e voltou ao seu vestido branco até chegarem ao balcão de inscrição.

Ambos se inscreveram na entrada da Arena principal da cidade e depois foram procurar um local para ficar.

As regras deste ano mudaram de novo. Virou uma mania dos organizadores para dar mais emoção. Todo ano alteravam completamente as regras quanto ao que era permitido fazer e usar. Esse ano:

  1. Armaduras de qualquer tipo são permitidas.
  2. Pode-se usar qualquer tipo de arma de curta distância.
  3. Só humanos! Se demônios forem detectados serão desqualificados.
  4. Matar é opcional.
  5. Quem chegar abaixo de 70% do bracelete de contenção será desqualificado. O uso é obrigatório.

— Duvido que vão seguir a número três, sempre deixam passar batido desde que não exagerem… — disse Arian pensativo, enquanto lia o panfleto das regras.

— Ainda bem, fica mais divertido assim. E sabe como é difícil imitar a força de vocês, fracotes? — falou Marko sorrindo. Sem magia e leves exageros físicos permitidos, era o tipo de torneio perfeito para ele.

— Então me considera um humano agora?

— Você é um pouquinho mais forte que um… Mas deviam proibir essa sua espada, acho que só não tem uma regra pra isso, porque ninguém que pode comprar um negócio desses arriscaria a vida em um torneio.

— Se fosse uma lâmina espiritual funcional, provavelmente pediriam para eu não usar, mas morta do jeito que está, duvido muito que liguem. Armas modificadas podem conseguir os mesmos atributos, e são permitidas.

— Não tenho problema com o bracelete. Nem sei usar magia. Mas e você? Acha que consegue se manter estável?

— Não vejo como “aquilo” acontecer aqui. Mas se houver um imprevisto, você sabe o que fazer — disse Arian, olhando sério para Marko.

— Sempre achei isso estúpido de qualquer forma. Se não querem as pessoas usando magia, deviam desqualificar quem fosse abaixo de 100%.

— Qualquer coisa que você faça gasta sua energia espiritual, incluindo andar. O único momento que as pessoas estão espiritualmente com 100% é quando dormem. Em momentos de tensão alguns usam uma boa porcentagem para se fortalecer, inconscientemente. Mas para descer de 70%, só usando alguma magia elaborada. Daí a regra padrão para detectar o uso de magia avançada ser o limite do 70%. Não aprendeu isso no treinamento militar?

— Hum… talvez tenham falado sobre. Nunca prestava atenção naquelas aulas chatas.

Depois de verificar as regras, foram para o centro da cidade, sempre populoso com seus largos corredores cheio de lojas e tendas. O cheiro agradável de comida estava por toda parte. A parte que realmente chamava atenção, no entanto, eram as estátuas do novo rei, espalhadas por toda parte.

— Eu não acredito… — Arian estava pasmo observando alguns trabalhadores quebrando uma estátua. Pelos dizeres da base, pertencia a Lancaster, um famoso herói do Sul.

— Já tinha ouvido boatos… O quão egocêntrico você precisa ser para mandar destruir todas as estátuas de heróis de uma cidade, e colocar imagens suas no lugar? — questionou Marko.

— Isso explica porque as estátuas em volta da Arena sumiram…

— Uma pena, aquela estátua da Lunar era tão sexy…

— Pelo menos o templo de Arcadia ele não teve coragem de tocar, ainda… — Arian estava olhando para o centro da cidade, onde a estátua de 40 metros de altura de um dragão podia ser vista, imponente, como se estivesse vigiando a cidade.

Tinham pouco dinheiro, então escolheram uma pousada barata. A cidade, como sempre, estava abarrotada de gente.

Diferente de anos atrás, o esgoto a céu aberto não podia mais ser visto. O novo sistema de esgoto que implementaram na cidade parecia estar fazendo efeito. Era provavelmente esse o motivo do desespero do Rei em recuperar o grande lago da fronteira com o Norte. Só ele para suprir a demanda necessária de água para manter a cidade toda limpa.

Esse era um problema da maioria das grandes cidades. Algumas resolveram de forma bem peculiar, com o uso de magia, mas poucos magos aceitavam ficar o dia inteiro transmutando fezes humanas, mesmo que pagassem bastante.

Encontraram um hotel bem antigo, todo em uma madeira preta, com cara de malcuidada. Uma velhinha simpática os atendeu na recepção. Ficava a apenas 20 minutos da Arena, o que o deixava bem prático. Estava cheio, mas conseguiram dois quartos.

— Que tal sua cidade começar a te pagar um hotel melhor, e colocar um amigo e funcionário na conta? — perguntou Marko, enquanto se dirigiam para os quartos.

— Não acho que teria problema, mas não quero chamar atenção. Aqui está bom o bastante. Não é como se fossemos ficar por muito tempo.

— Vou dormir, estou cansado da viagem — disse Arian, entrando em seu quarto, ao lado do de Marko. Já começava a escurecer do lado de fora.

O quarto era simples: uma cama encostada na parede, uma mesa de cabeceira e um armário velho de madeira preta. A janela dava para a rua, deixando o ambiente meio barulhento, o que explicava aquele ser um dos últimos quartos restantes. Arian tirou as espadas médias das costas e foi se deitar na cama. Ela tinha lençóis brancos desgastados, mas parecia limpa.

A espada enferrujada e cheia de rachaduras que levava na cintura, dormia junto com ele, sempre na mão esquerda. Um velho hábito, e uma forma de se precaver contra tentativas de assassinato.  

Marko passou a noite em um bordel próximo, só aparecendo de madrugada no quarto de Arian, extremamente bêbado.

— Ei, Arian, Arian! Acorda! — Marko o estava balançando na cama.

— Que foi…? — falou, sem abrir os olhos.

— Acho que vi aquele tal de Cavaleiro Negro. O maluco matou os donos de um bordel onde eu estava. Tinha umas garotas, aparentando maus tratos correndo, não lembro bem, devia estar usando trabalho escravo. Mas eu vi alguém de preto passando por lá — disse o amigo, em um tom de preocupação.

— Ei, me dá um espaço aí. — Marko o empurrou para o canto da cama.

— Quê?! Vai pro seu quarto! — Arian abriu os olhos e voltou a ocupar o meio da cama.

— Não vou dormir sozinho… Vai que aquele fantasma da morte aparece. — Marko estava suando.

— Cavaleiro da morte. Não disse que era só um maluco vestido? Não sabia que tinha medo de fantasmas, ainda mais conhecendo um — debochou Arian.

— <E> é legal, esse outro cara de preto eu já não sei… — Marko foi até o armário, estava pegando um bando de fronhas.

— <E>, está aí? — perguntou Marko, enquanto forrava as fronhas no chão.

O gigante olhou para Arian, esperando uma resposta.

— Está deitada do meu lado direito, olhando pra você.

— Avisa a gente se um maluco de preto aparecer —  falou, enquanto deitava olhando meio desconfiado para a janela e para a porta do quarto.

<E> levantou o braço e fez um sinal positivo com o dedo. Mas logo depois, virou na direção do ombro de Arian e voltou a dormir, o que fez Arian dar uma risada contida.

— O que foi? — perguntou Marko, perplexo.

— Nada… boa noite.

Na manhã seguinte, Arian foi despertado por <E>, assim que o dia clareou. Sempre com seu método peculiar de pegar uma mecha do longo cabelo branco e ficar passando ele no rosto do guardião até ele acordar. A garota parecia ansiosa para o torneio, e para que alguém fizesse com que Marko, que estava dormindo no chão, ao lado da cama de Arian, parasse de roncar.

Comeram pães e frutas no café da manhã do hotel.

— Ainda não consegue sentir o gosto de nada? — perguntou Marko, observando que Arian estava bebendo água.

— Na verdade vem piorando, passo mal bebendo qualquer coisa que não seja água, e o gosto da comida vem ficando cada vez mais fraco — disse, enquanto observava <E> na cadeira ao lado. Estava babando vendo ele e Marko comendo. Infelizmente, fantasmas não podem comer. A parte curiosa, e provavelmente torturante para ela, é que podia sentir o cheiro de tudo à sua volta.

— Amigo, seja qual for a sua raça, ela é horrível. Ninguém deveria ser privado dos prazeres do álcool — disse Marko, esvaziando seu oitavo copo de cerveja aquele dia.

Depois disso, se dirigiram para a Arena, que esse ano, tinha um modelo bem diferente de preliminares.

Próximo: Capítulo 10 – 100 entram 8 saem

Ao terminar dê um feedback breve do que achou do capítulo, isso ajuda o autor.