AnimeTopics #03: “Por que aquele episódio ficou tão mal feito?”

A dúvida de porque alguns episódios tem uma estética melhor do que outros no mesmo anime é comum. E apesar do pessoal com mais conhecimento da parte técnica de animes entender o porque disso um gringo que trabalha na industria de animes confirmou nossos temores no twitter esses dias.

Eu podia traduzir o que o Thomas Romain, um animador gringo que trabalha para Satelight e faz serviços freelance falou (aqui), mas já comentei sobre mais da metade do que ele falou no guia de estúdios e animetopics #02, então vou comentar da parte importante que ainda não abordei misturando e expandindo algumas coisas que ele falou. Além de concertar alguns equívocos dele como o de dizer que só o “Ghibli” faz tudo in-house, quando o Kyoto Animation também o faz (em termos de “animação”, se expandir para backgrounds a coisa muda um pouco). Acho que é uma prova de que só porque você trabalha na HP não quer dizer que saiba tudo a respeito de todas as outras empresas de TI do mesmo ramo.
Animadores
É normal em animes ver cenas mais bem feitas e menos bem feitas no mesmo episódio. Isso ocorre porque a cada tantos segundos você está vendo o desenho de um animador diferente – a não ser que esteja vendo um episódio “solo”, como o 5º episódio de Kimi no Uso (lindíssimo). A revisão de design ajuda a manter a qualidade visual semelhante, mas para olhos atentos ela dificilmente é a mesma 100% do tempo.

Animadora no anime Shirobako (review), uma obra sobre a produção de animes.
Quando em um anime uma cena simples fica absurdamente bem feita e uma que deveria ser mais bem acabada e fluida fica meia boca é quase certo que foram feitas por animadores diferentes, e ao contrário do que se pensa nem sempre o melhor animador pega a cena mais exigente para fazer (em alguns casos a staff deixa eles escolherem a cena do episódio que querem fazer).

Não é incomum ver episódios aonde uma cena de slice of life sem importância fica muito bem feita e outra mais importante como um climax de ação acaba deixando a desejar (em Akame ga Kill ep 2, a melhor cena é a Akame pulando no rio e nadando, não a luta do final). Pode ser sorte de colocar um novato com talento e ele fazer um trabalho acima da esperado na cena ou um animador experiente quis pegar aquele corte por qualquer motivo, deixando a parte da ação para alguém não tão bom assim.

Muito serviço para pouca mão de obra qualificada
Com as produtoras querendo a cada dia produzir mais animes não param de nascer mais estúdios (apesar dos donos afirmarem que não dá dinheiro eles continuam surgindo todo ano…..). Já comentei sobre o processo a fundo no guia de estúdios. Os funcionários de um estúdio ganham experiência, com tempo juntam um time pequeno de amigos e fundam um estúdio próprio na esperança de ganhar dinheiro e ter o próprio negócio.
O problema é conseguir animadores experientes para trabalhar nesse estúdio. Como é um serviço infeliz aonde você ganha pouco e trabalha muito, cada dia tem menos pessoas dispostas. Os bons costumam rapidamente se tornar freelancers para conseguir melhores contratos e em maior quantidade (animadores ganham por keyframe desenhado afinal, e pela complexidade do mesmo).
Alguns deles com talento conseguem desenhar bem e rápido, se destacam em pouco tempo e fazem dinheiro (os caras especializados em sakugas ou “corte de animação fluido”, como Nozomu Abe ou Tetsuya Takeuchi). O problema é que existem poucos deles, e enquanto alguns animadores em 1 a 2 anos conseguem evoluir para fazer coisas fantásticas a maioria mesmo depois de 10 anos só consegue desenhar em uma velocidade moderada e nem sempre cortes elaborados. A prática faz a perfeição é uma frase meio enganosa nesse aspecto, porque se fosse verdade todo animador depois de certo tempo conseguiria criar animações de ação ou drama elaborada, o que infelizmente não é o caso.
Produtora assistente no anime Shirobako (review), uma obra sobre a produção de animes.
Cada dia existem menos animadores de sakugas e cada dia tem mais animes sendo produzidos e mais estúdios (staffs de anime para ser mais exato) tentando disputar esses animadores experientes a tapa, nem que seja para ajudarem em um episódio mais exigente sequer.
Embora boa parte da staff de animes sejam freelancers a produtora tem que pagar alguns funcionários como o diretor, designer e assistentes de produção durante todo o processo, então para economizar eles tentam espremer o cronograma ao máximo. Com o tempo de produção que eles tem para cada anime reduzido ao mínimo a staff não pode esperar os animadores bons que conhecem ficarem livres. Eles irão pedir para qualquer um minimamente qualificado fazer os desenhos, mesmo que tenham que recorrer a animadores medíocres por falta de opção, e em alguns casos extremos até a estudantes que fazem isso por hobby. É dai que saem episódios mal feitos de vez em quando. Por isso quanto mais animadores top de linha o pessoal da staff conhecer melhor. Assim mesmo que algum esteja ocupado eles podem tentar recorrer a outro, e assim por diante, deixando os medíocres para o último caso. 
De vez em quando o cronograma aperta tanto que a Staff tem um tempo ridículo de menos 2 semanas para animar um episódio, e tem que recorrer a animadores ruins porque os bons estão ocupados ou se recusam a trabalhar em condições ridículas, como a de animar um episódio em 2 semanas quando o tempo padrão é de 1 a 2 meses . Com a falta de tempo não permitindo uma revisão devida dos desenhos os episódios cheios de “qualitys” são criados com facilidade.
Verba
Normalmente as pessoas resumem tudo a verba. A verdade é que em alguns pontos ela pode ajudar sim, com prazos maiores (que custam mais) e dinheiro para contratar animadores experientes em tempo integral ao invés de tentar pedir ajuda só em algumas partes. Mas um anime com muita verba quando todos os animadores bons estão ocupados com outros projetos vai ter animação medíocre da mesma forma (só a consistência que vai ser decente porque existe um bom tempo para revisar os designs). Sekirei é um bom exemplo da diferença que uma boa staff de animadores pode fazer. O anime começa com animação mediana e depois de alguns episódios quando um time de animadores experiente começa a trabalhar no projeto (estavam ocupados antes do ep 4? não sei dizer) a consistência melhora e começam a aparecer um bando de cortes de animação fluida nas lutas. O mesmo time participou da segunda temporada, que diferente da primeira já começou com animação acima da média.
Em alguns casos você tem até uma boa verba mas com um tempo ridículo, ai tem que distribuir um episódio que poderia ser feito por 10 a 20 animadores para 200 pessoas diferentes de modo a conseguir terminar ele a tempo. Como essas pessoas tem níveis de experiência completamente diferentes uma da outra é obvio que nem todas vão conseguir fazer seu trabalho direito. Foi o caso por exemplo de Attack on Titan de 2013. A lista de créditos da staff dele era uma absurda com a quantidade de gente trabalhando em cada episódio.

Em termos de animação para TV “menos é mais”, quanto menos animadores chave envolvidos normalmente melhor vai ser o trabalho, animadores chave (key animators) demais indica falta de tempo para produzir o episódio. Não precisa ser um gênio para entender os problemas gerados em dividir um storyboard de 20 minutos entre mais de 100 pessoas. Imagine o trabalho de quem vai organizar e revisar tudo isso, somado aos in-betweens e 2nd key animation que vão ter que ser acrescentados depois. Algo como 1 minuto para cada animador é bem mais tranquilo de revisar e estruturar, apesar de ser raro e até 50 animadores chave em um episódio ser algo comum de ver (episódios bem feitos costumam ter de 10 a 30 no entanto).   

Toei “desanimation” e como nascem os episódios mal feitos
(ao menos concertaram na versão Blu-ray)
O episódio 5 de Dragon Ball Super que ilustra esse post (não acompanho, mas fui ver pela polêmica) foi um exemplo típico de falta de tempo e gente experiente para trabalhar no episódio. O diretor do episódio já fez ótimos trabalhos e o diretor de animação também, mas eles não tiveram tempo de revisar o episódio antes dele ir ao ar, e não conseguiram animadores minimamente experientes para trabalhar no episódio a tempo (tinha uns 2 ou 3, nem “tudo” ali foi ruim), resultando naquilo, um episódio “no geral” bem mal acabado. Isso é normal nos animes da Toei porque ela tem o costume administrativo de manter uma quantidade absurda de animes sendo produzidos ao mesmo tempo sem ter uma staff do estúdio que comporte isso (por isso vai continuar com sua má fama enquanto existir). 
Ela até tem animadores bons no estúdio, mas coloca eles para revisar e criar cortes importantes em tantos projetos ao mesmo tempo que eles acabam não ajudando muito nenhum dos shows em que trabalham. Quando algum dos animes dela está precisando urgentemente de animadores os experientes estão sempre ocupados e quase todos os freelancers bons que o estúdio conhece também, então recorrem aos medíocres mesmo. Os animes dela continuaram tendo episódios horríveis, medianos e alguns bem feitos de vez em quando (quando conseguem reunir um time bom de animadores) até ela decidir mudar seu modelo de gerenciamento, o que não deve ocorrer tão cedo, porque ela faz dinheiro assim. Ou seja, podem meter o malho mesmo, a empresa merece (a staff não, eles são as vitimas).
Solução?
A solução para a questão, que o animador gringo do qual falei no início do post comentou é “Reduzir o número de animes produzidos ao ano, aumentar os prazos, verba e melhorar as condições de trabalho dos animadores, para que novos talentos sejam incentivados a entrar na industria ao invés de abandona-la”. Para se ter uma ideia sobre verba, um anime de 1 cour custa em média de 1,5 a 2 milhões de dólares para ser feito e gastam mais uns 500 mil em marketing (fonte), enquanto isso um desenho da Pixar, que equivale a 5 episódios de um anime de 1 cour, custa sozinho mais de 150 milhões de dólares. SIM, COM O DINHEIRO DE UM FILME DA PIXAR VOCÊ FAZ MAIS DE 60 ANIMES DE 12 EPISÓDIOS!
A industria precisaria desacelerar e se reinventar para a coisa melhorar, mas o que acontece a cada dia é o contrario, as produtoras querem mais animes sendo produzidos em menos tempo e a um custo ainda mais baixo, o que incentiva os estúdios a forçar condições ridículas sobre seus empregados.
Conclusão
Não é impossível mudar, alguns estúdios como a Kyoto Animation conseguiram de fato dar um “dane-se” para o modelo padrão da industria e reinventar seu modelo de negócio. Mas para a maioria isso se torna cada dia mais difícil, porque para dar uma pausa e se restruturar você tem que parar de lucrar ou conseguir juntar dinheiro o bastante para investir em qualidade ao invés de quantidade. E mesmo quando dada a oportunidade as pessoas são relutantes. É algo arriscado afinal, e um passo em falso pode levar o estúdio a falência com facilidade. A própria Ufotable caiu na tentação e arriscou sair de seu modelo de negócio com longos prazos para tentar animar God Eater no mesmo tempo minusculo que os outros estúdios tentam produzir seus animes, e o resultado não foi muito bom.
A verdade é que com a quantidade de animes produzidos aumentando a cada dia e menos talento trabalhando neles me admira que mais animes não saiam completamente mal feitos (não que no passado não existisse isso, mas está piorando atualmente). A coisa deve continuar assim enquanto a industria de animes não decidir se reinventar do modelo que usa desde 1960 ou o governo forçar leis que a obriguem a tal. Até lá o negócio é torcer para que as “qualitys” não aconteçam com um anime que você gosta.

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