Resenha: Casshern Sins e a dicotomia entre a vida e a morte


-Algum dia você já refletiu sobre a própria morte? Acredito que sim. Todos já devem ter pensado ao menos uma vez na possibilidade de morrer, e em como isso é inevitável, e essa certeza deu lugar a um desespero temporário, que se dissipou à medida que se conformavam com o fato.

-Agora imagine, por obséquio, que você seja imortal. E se por acaso alguma coisa acontecer e você perder essa sua imortalidade? Para nós, seres viventes, o espectro da morte é algo natural, mas como um ser imortal se portaria diante de tal calamidade?

Senhoras e senhores, vos apresento Casshern Sins.


-Casshern Sins é um remake da série clássica dos anos 70, Neo-Human Casshern, que inspirou a popular franquia Megaman nos anos 80. Foi animado pela Madhouse em 2008, com direção de Shigeyasu Yamauchi (que dirigiu alguns filmes de Dragonball Z) e roteiro de Yasuko Kobayashi (Shakugan no Shana, Claymore e o tão aguardado Shingeki no Kyojin). A história se passa em um mundo pós-apocalíptico em que os humanos estão quase extintos e os robôs sofrem com um fenômeno conhecido como ruína, que os privou de sua imortalidade. Agora eles vagam pelo mundo tentando encontrar algum sentido para sua existência enquanto esperam pela ruína. Porém, há rumores de que é possível evitar a ruína. Para conseguir esse feito, eles devem devorar o corpo de um andróide conhecido como Casshern, o protagonista da série. 

-As semelhanças com Megaman não me deixam mentir. Como admirador da franquia (em especial dos jogos), eu não pude deixar de perceber o quão similar a premissa e o mundo das duas séries são. Na série original, Casshern lutava contra a dominação das máquinas liderada por Braiking Boss. Na série X, Megaman luta contra a dominação das máquinas liderada por Sigma. Foi uma sábia decisão alterarem a premissa em Casshern Sins, pois isso tingiu a série com um tom mais maduro e mais reflexivo.

-Vou dedicar um parágrafo para a animação. Há muitas cenas paradas de Casshern perdido em devaneios, mas as lutas são espetaculares. Os fãs de shounen irão se deleitar com a brutalidade com que Casshern destrincha os seus adversários. É uma faceta instintiva difícil de ser dissociada do personagem. E o mais importante, os personagens se movem. Isso mesmo, nada de quadros estáticos com efeito de movimento ou CGIs toscos. Os enquadramentos são sublimes e a coreografia das lutas muito bem executada. O jeito de Casshern lutar é repleto de acrobacias, movimentos de dança e embates aéreos de tirar o fôlego. Quem procura profundidade, Casshern tem. Quem procura ação, também tem. Para quem procura bons personagens, esse é o seu lugar. 

-A trilha sonora também é primorosa. Kaoru Wada é conhecido principalmente por ter composto da trilha sonora de Inuyasha.  Com alguns arranjos orquestrais mais agressivos e outros que emulam uma atmosfera de suspense, ele conseguiu compor uma trilha sonora simplesmente épica.


“Eu não conheço nada…nem a mim mesmo, porém meus inimigos me chama de…Casshern”


-Casshern é um anti-herói. Ele é acusado por todos que encontra de ter assassinado o “sol” conhecido como Luna, o que segundo eles, teria principiado a ruína. Por onde quer que ele passe, há batalhas das quais ele não consegue se abster. Por vezes, ele salva outros robôs de arruaceiros, e por vezes experimenta traição dos mesmos que salvou, justamente por ser quem ele é: Casshern, aquele que trouxe a ruína para o mundo. Para piorar a situação, ele possui um modo de emergência que ativa automaticamente quando está em apuros. Nesse estado, Casshern não consegue distinguir amigo de inimigo, e ataca qualquer um que entre em seu campo de visão indiscriminadamente. Invariavelmente, uma pilha de corpos terá se acumulado ao cessar o efeito.

“Você não aparenta ser um humano, mas eu também não posso acreditar que você seja um robô. Você é novo, como se tivesse sido construído ontem.”


-Casshern é como uma criança. Ele perdeu a memória e agora tem de conviver em um mundo no qual é taxado de criminoso, assassino, anjo do apocalipse. Ao mesmo tempo em que é considerado como a perdição de todos os robôs, também é visto como a salvação para os mesmos. Casshern é imortal, e por essa razão, todos acreditam que possam se tornar imortais se o consumirem. Ele é como a figura de Jesus. Ao ser sacrificado, renovará as esperanças de um mundo corrupto e decadente. É importante salientar que Casshern odeia sua imortalidade, visto que a mesma não o traz nada de bom, ao passo que seus perseguidores acreditam que imortalidade equivale a felicidade, o que é um dos grandes temas do anime.


“Eu trago calamidade para o mundo, e por isso não mereço viver”

-A despeito do consenso de que personagens invencíveis são desinteressantes, nesse caso a regra não se aplica. A imortalidade é introduzida justamente para contrapor o personagem com o resto da mundo e fortalecer a coesão da sua problemática. As batalhas não são importantes, pois Casshern Sins não tem um vilão. Eles não rotulam nenhum personagem como o “big bad”, e aquele que era o antigo “big bad” perdeu todo seu exército com a ruína e vaga sem rumo. Durante praticamente toda a extensão da história, o mais importante é o embate entre idéias entre as figuras emblemáticas que figuram na narrativa.

 -O anime aborda a dicotomia entre a vida e a morte de uma forma inusitada. Pessoalmente, achei genial a idéia de utilizar robôs (seres imortais) como meio de discorrer sobre a temática da série. Isso nos possibilita pensar fora da caixa, sem nos limitarmos à nossa realidade e experiência. E o anime nunca se perde na sua proposta. Todos os episódios tem um sentido, uma mensagem, algo a ser pensado, comentado, compartilhado. E essa profundidade não é construída por meio de simbolismos exagerados ou discursos desvairados. O que propele a construção da narrativa são justamente os personagens, que são muito bons. Especialmente os secundários, que tem uma presença de espírito e um carisma muito fortes.

-Como eu disse anteriormente, a dicotomia entre a vida e a morte é um tema recorrente em Casshern sins. O método de abordagem consiste em contrapor a esperança e o desespero de maneiras diversificadas em cada episódio. Casshern é uma criança perdida, e a cada episódio ele vai encontrando novas pessoas e assimilando as suas ideologias e sua maneira de pensar. No decorrer do anime, vemos vários robôs (e alguns poucos humanos) se esforçando ao máximo para preservar seus sonhos, expectativas, sua vontade de viver. Por outro lado, existem também aqueles que se acomodam, tornando-se vazios em seu interior.
“Nós não temos palavras para rezar ou lágrimas para chorar. Nós apenas aceitamos a ruína em silêncio”

-No segundo episódio, Casshern chega a um alojamento de robôs que se conformaram e decidiram aceitar a ruína em silêncio, em contraste com aqueles que se entregaram ao desespero. Os robôs arruinados são levados para uma construção parcialmente soterrada, cujo interior é preenchido com vários bancos de igreja. A igreja é uma alegoria da espiritualidade e de nossa necessidade de confiar votos e promessas para uma entidade além da nossa compreensão. A tradição cristã alega que no dia do apocalipse, Jesus virá a terra e nos contemplará com a vida eterna, que é justamente o que os robôs almejam. É natural que queiramos buscar salvação no espírito quando as faculdades do corpo se encontram irremediáveis. Se existe morte, existe vida. E se existe vida, esta é proveniente de alguma fonte. 

“Voce foi criado para aniquilar todos os seres vivos, porém você pode salva-los sacrificando a sua”
-E qual seria essa fonte? Nos tempos que precedem a ruína, ela atendia pelo nome de Luna. Nos tempos atuais, a fonte de vida é ele, Casshern, esbanjando beleza e imortatalidade. A morte não pode existir sem a vida. Por conseguinte, só estamos vivos se somos mortais. Esse é outro tema em pauta no anime. O que é viver exatamente? Há alguma diferença entre viver e estar vivo? Essas perguntas vão sendo respondidas com a progressão do enredo e as interações entre Casshern e os personagens primários e secundários.

-O aproveitamento dos personagens secundários em Casshern é muito bem articulado. Arrisco dizer que não vi personagens secundários tão expressivos em nenhum outro anime até hoje. Eles têm uma mágica que faz você gostar deles quase que instantaneamente. Para ser mais exato, eles vivem, e no contexto da série, isso faz muita diferença. Temos Sophita, que adora lutar, Janice, que vive para cantar, Niko, que está sempre tentando realizar feitos além de sua capacidade, e muitos outros. E a direção da série é espetacular em transpassar esse sentimento. Um vídeo fala por mil palavras.

“Eu vivo para cantar. E você, vive para matar?”

-O que vemos nessa cena? Janice, com suas canções, faz a esperança aflorar em todos os espectadores. Nesse ínterim, Casshern luta com os robôs que tentam invadir o palco. São dois cenários totalmente díspares, mas que conseguem se entrelaçar magnanimamente. A música de Jane ressoa  nos espectadores, em Casshern e em nós que estamos assistindo. É uma mensagem de cerne motivatório, que nos instiga a correr atrás de nossos sonhos, a buscar novos horizontes e não arranjarmos desculpas para desistir antes de tentar. Para Casshern, esse é o seu maior desafio na vida, pois o mesmo não possui sonhos tampouco motivações, e escarnece sua imortalidade como uma maldição. Viver para ele não é senão continuar a sofrer para a eternidade.

-Casshern odeia lutar, mas não tem escolha. Por que lutar afinal? A que as pessoas aspiram quando estão lutando? Ele não é capaz de compreender esse conceito. No sentido metafórico, lutar é encarar a realidade, é lidar com seus problemas e solucioná-los. Lutar é se esforçar para conseguir o que quer. Lutar é não ter medo do amanhã, é viver no presente. Muitas pessoas se encontram no mesmo buraco de Casshern. Elas não sabem o que fazer da vida, perdem gradativamente a vontade de viver, pois não vêem sentido em uma existência lamuriante. Elas perderam a capacidade de sonhar, e até mesmo a capacidade de sentir prazer. Elas chegam em casa todos os dias, tiram a roupa, tomam banho, esquentam a comida fria no microondas, assistem o noticiário e dormem, pois amanhã terão de fazer exatamente a mesma coisa que fizeram hoje. Essa era a temática central de Shugo Chara, cujo intuito era estimular a reflexão acerca do nosso potencial desperdiçado. Nosso sistema atual é destrutivo, não importa quanta propaganda positiva seja feita em cima disso. Mercado de trabalho, currículo, carreira profissional…estamos nos tornando cada vez mais automáticos, robóticos, vazios.
-O questionamento mais notável de Casshern é esse. Se viver é sofrer, por que vivemos? Qual é o sentido de viver no vazio da ruína? De um lado temos outra personagem (que eu não vou revelar quem é por ser spoiler) que considera a vida como o bem mais ilustre e precioso que existe. Por outro, temos Casshern, cuja existência por si só lhe causa mais sofrimento do que qualquer outro. Quem está certo? É possível que não exista uma resposta para essa pergunta. O que de fato podemos afirmar é que a vida e a morte são dois lados de uma mesma moeda. Elas devem existir em equilíbrio, pois uma vez que a balança pende para um dos lados, vários distúrbios e complicações vão se atrelando, e isso vira uma bola de neve. Quando nos fixamos em uma ou em outra, nos esquecemos que o mais primordial para o ser humano é viver. Não apenas viver, mas saber viver. E essa é a essência da Casshern Sins. É um anime que aborda os vários tipos de viver existentes e a linha tênue que os separa do delírio existencial.

Essa foi a minha primeira resenha de anime completado. Espero que tenham gostado. Em todo caso, comentários são sempre bem vindos.

-Até a próxima.